Crise e discernimento

Bastaria uma taxa mínima sobre as transacções realizadas offshore para resolver boa parte do problema da fome no mundo.

Recentemente foi tornado público um importante e profundo documento do Vaticano sobre “Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do actual sistema económico e financeiro” (denominado em latim, Oeconomicae et pecuniariae quaestiones). Como habitual, passou quase ao lado dos media, que preferem temas mais “picantes” e, não raro, prosaicos à volta da Igreja.

No texto, começa-se por reconhecer que a crise financeira global, apesar de esforços positivos, não se afirmou plenamente como uma oportunidade para “desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e uma nova regulamentação da actividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos e valorizando o serviço à economia real”.

Os mercados não são capazes de se auto-regular, pois que lhes falta a perspectiva mais social e até personalista (coesão social, honestidade, confiança, segurança) e a capacidade de corrigir ou prevenir as “externalidades prejudiciais à sociedade humana (desigualdade, assimetrias, degradação ambiental, insegurança social, fraudes...)”.

No mundo financeiro, é chamada a atenção para situações que, embora estando na orla da legalidade, configuram casos próximos da imoralidade, em que muito facilmente há abusos e enganos. E o documento exemplifica: “comercializar alguns instrumentos financeiros, por si mesmo, é lícito. Contudo, numa situação de assimetria, aproveitar-se das lacunas conhecidas ou da fragilidade contratual de uma das contrapartes, constitui por si mesmo, uma violação da devida exactidão relacional e é já uma grave infracção do ponto de vista ético”.

E continua: “Tal prática resulta particularmente deplorável do ponto de vista moral, quando a mera intenção de especular e ganhar da parte de poucos – por exemplo, importantes fundos de investimento – provoca uma artificiosa queda dos preços de títulos de dívida [...], agravando a situação económica de inteiros países”.

Tais lógicas egoístas e de curto-prazo têm levado grandes empresas a adoptar políticas económicas prioritariamente voltadas para satisfazer as vantagens dos accionistas, prejudicando legítimos interesses dos outros “stakeholders”, como os dos trabalhadores e consumidores. “Há administradores incentivados por relevantes remunerações proporcionais aos resultados imediatos da gestão, em geral não contrabalançadas por equivalentes penalizações em caso de incumprimento dos objectivos [...], promovendo, assim, riscos excessivos.

Para alguns produtos financeiros, como os derivados, foram construídas estruturas sempre mais complexas (securitizações de securitizações), "nas quais é sempre mais difícil quase impossível, após sucessivas transacções – estabelecer de modo racional o seu verdadeiro valor”, logo se favorecendo o surgimento de sucessivas bolhas especulativas.

O documento aborda também o desígnio especulativo e imoral das finanças offshore, que “mediante muitos e difusos canais de elisão fiscal, quando não de lavagem de dinheiro dos resultados de receitas ilícitas (furtos, fraudes, corrupção, máfias, saques de guerra...), constitui um consequente empobrecimento do normal sistema de produção e distribuição de bens e de serviços.

Hoje, mais de 50% do comércio mundial é efectuado por grandes grupos que reduzem a carga tributária deslocando os lucros de uma sede para outra, segundo as suas conveniências, transferindo os ganhos para os paraísos fiscais e os custos para os países de elevada imposição tributária. “Tudo isto subtrai recursos decisivos para a economia real e contribuiu para gerar sistemas económicos fundados na desigualdade.

Embora a opacidade dos paraísos fiscais torne difícil estabelecer com precisão a quantidade de capitais que transitam nos mesmos, é legítimo pensar que bastaria uma taxa mínima sobre as transacções realizadas offshore para resolver boa parte do problema da fome no mundo. Por isso se pergunta no texto: “por que não tomar com coragem a direcção de uma semelhante iniciativa?

Recordo aqui uma estimativa conservadora da ONG Oxfam de 2013: o dinheiro em paraísos fiscais terá atingido um valor superior a 14.000.000.000.000 de euros, o que equivalia a 19,5% do total mundial de depósitos e a 82 vezes o PIB de Portugal! Estima-se, igualmente, que a perda de receitas fiscais directas que resultaram desta evasão tenha chegado a 160.000.000.000 de euros.

No fim, o documento exorta as pessoas a escolher os bens e serviços, bem como a gestão de poupanças, que tenham implícito um percurso digno do ponto de vista ético. Seria uma espécie de “voto com a carteira”, ou seja, “votar” diariamente nos mercados a favor daquilo que ajuda o bem-estar real de todos e de rejeitar aquilo que é prejudicial.

Para a mudança, é também desejável que instituições universitárias e business schools prevejam suficiente formação substantiva para compreender a “economia e a finança à luz de uma visão completa do homem, que não esteja reduzida a algumas das suas dimensões e que tenha subjacente valores e princípios éticos”. Mesmo as católicas...

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