Para Rodrigo Amado, é tempo de ir mais fundo nas raízes

Depois de um impressionante disco de estreia com This Is Our Language, Rodrigo Amado regressa ao seu quarteto Americano com A History of Nothing, assertiva inscrição numa tradição colhida do outro lado do Atlântico.

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Laurent Orseau

No concerto dos Implicate Order no Seixal, em Março de 2000, os três músicos norte-americanos abriram o palco e convidaram dois locais para se lhes juntarem numa sessão de música improvisada: os saxofonistas Paulo Curado e Rodrigo Amado. Rodrigo tinha passado a década anterior a tocar em concertos sem rede ou a emprestar o seu saxofone a discos e actuações de grupos com uma queda para a experimentação a partir de uma noção alargada do espectro pop/rock. Ainda hoje, esse concerto no Seixal (que se tornaria a edição inaugural da Clean Feed) lhe está fixado na memória como um momento fundamental do seu percurso. Ao escutar a gravação dessa noite em que pisara o mesmo palco que três improvisadores de peso da cena norte-americana – Steve Swell, Ken Filiano e Lou Grassi, gente que integrava as bandas de Roswell Rudd ou William Parker –, espantou-se que tivesse subido a palco e “tocado alguma coisa que fizesse sentido”. “Aquilo soava-me bem, até parecia um daqueles músicos que admirava e ouvia. Lembro-me da surpresa e da felicidade que foi esse momento.”

A partir daí, as conquistas foram-se sucedendo sem interrupções. Mas implicaram um esforço desmedido por parte do saxofonista, tentando encurtar as distâncias que eram, logo à partida, sintoma da desigualdade de circunstâncias sempre que se via lado a lado com músicos provenientes de países com fortes tradições jazzísticas – Estados Unidos, claro, mas também Noruega, por exemplo. “É um trabalho contínuo e faz parte da dificuldade que é para qualquer músico português afirmar-se num meio em que os músicos com um trabalho mais relevante vêm de tradições culturais muito mais ricas do que a nossa”, sublinha.

Se o disco com os Implicate Order deu um importante empurrão para o início do percurso de afirmação de Rodrigo Amado, no imediato foi decisiva a ligação a Filiano mas sobretudo, pouco depois, a criação do trio que partilhou com o contrabaixista norte-americano Kent Kessler e com o baterista norueguês Paal Nilssen-Love. Os dois álbuns – Teatro (2006) e The Abstract Truth (2009) – e os muitos concertos que aconteceram pelo meio ajudaram à ascensão do seu nome na cena internacional. “Mas lembro-me que estava com eles e sentia-me o miúdo – um pouco a nível pessoal mas totalmente a nível musical”, confessa.

As coisas começaram a mudar depois de uma maturidade que foi potenciada, em grande parte, pela aposta séria e intensa na actividade do Motion Trio – que partilha com Miguel Mira e Gabriel Ferrandini. Mesmo que a modéstia o impeça de dizer que está finalmente entre iguais – as votações do site espanhol El Intruso como melhor saxofonista tenor de 2017 e 2015, colocaram-no à frente de nomes como Evan Parker ou Ken Vandermark, a partir de escolhas de 58 críticos internacionais –, Rodrigo Amado sabe que o jogo mudou de forma considerável por alturas da primeira gravação com aquele a que chama o seu “quarteto americano”. Ao lado de um histórico como Joe McPhee e de uma propulsão rítmica do calibre elástico desta que une Kessler e Chris Corsano, o saxofonista havia de ter de se valer dos seus melhores argumentos para liderar uma formação de possibilidades estratosféricas.

E basta ouvir This Is Our Language (2015) – título afirmativo, a marcar território e a reivindicar uma identidade comum – para não restarem dúvidas: Amado não se encolhe nem se empoleira; não se coloca na sombra nem procura com sofreguidão a ribalta. Os quatro simplesmente tocam juntos e a música desvela-se por si.

Choques

Há muito, de resto, que estes embates (por vezes violentos) com figuras cimeiras do jazz contemporâneo forçam crises de crescimento sobre as quais se alicerça uma linguagem que se pretende em contínua expansão. Se Kent e Nilssen-Love produziram esse efeito em Rodrigo Amado, e agora o quarteto americano volta a exigir-lhe uma musicalidade arguta e de enorme jogo de cintura para responder aos choques disparados pelos outros três, a bordo do Motion Trio os encontros com dois dos mais extraordinários músicos deste tempo produziram também estragos luminosos, ambos no palco do Maria Matos. Primeiro, com a trompete incandescente de Peter Evans, tiveram de resolver em cena uma tensão que solta faúlhas até quando se escuta o registo em Live in Lisbon. Logo a seguir, em 2015, com o piano quebradiço e aracnídeo de Matthew Shipp.

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A History of Nothing será também uma exposição fotográfica daqui por alguns meses. Por agora, é uma monumental imersão nessa busca por raízes, pela pertença e pela libertação quase espiritual dos excessos do quotidiano

No final da actuação, Matthew Shipp havia de perguntar aos três Motion onde é que tinham aprendido a tocar aquela música e garantia que “Vocês ficaram aqui com uma gravação incrível”. Mas o trio não estava convencido. “Foi um concerto muito complicado porque o nível de energia estava completamente descontrolado”, recorda Rodrigo. “Saí com a sensação de que algo não tinha funcionado, estava mesmo insatisfeito. Depois ouvimos a gravação e havia um excesso de linguagem.” A gravação foi posta de lado e só recentemente, enquanto arrumava alguns desses registos, voltou a enfrentar a música criada naquela noite. E, de repente, sem o apego emocional do momento, encontrou-lhe um sentido novo. Esse disco deverá vir a existir no futuro. Por agora, interessa extrair daqui que a distância permite reequacionar e tomar decisões mais claras.

As raízes

A History of Nothing, o sucessor de This Is Our Language com o quarteto americano, beneficia dessa aprendizagem e desse estofo que o músico foi solidificando com os anos. A experiência aconselhou, desde logo, que a gravação do álbum fosse marcada “propositadamente a meio da digressão” que realizaram no início de 2017. “Assim já tínhamos para trás alguns concertos que funcionaram como aquecimento da banda e mais tarde estaríamos já demasiado cansados, porque no fim de uma digressão destas estão todos arrasados”, explica. Foi uma lição que aprendeu com numa passagem pelo estúdio com o Humanization Quartet – a gravação aconteceu no pico da exaustão.

Desta vez, o registo foi feito no dia seguinte ao magnífico concerto no Centro Cultural de Belém, tirando partido de uma transformação que Rodrigo Amado detectou logo nos primeiros momentos do reencontro: “Quando tocámos a primeira vez juntos, vimos que havia uma linguagem comum que tornava as coisas muito fáceis. Quando nos reencontramos, normalmente essa linguagem está um pouco mais à frente. Agora, senti que eles estavam muito mais confiantes com a situação. Vieram para a digressão muito mais descontraídos e isso, em termos musicais, tem resultados muito evidentes – a música rolava de uma forma mais orgânica.”

Essa qualidade orgânica revela-se, por exemplo, num maior conforto na ocupação do espaço. As ligações e as formas de diálogo multiplicaram-se de uma forma tão manifesta que o saxofonista nem esperava atingir um tal grau de familiaridade palpável na gravação de estúdio. Daí que nos seus planos iniciais estivesse a edição de dois discos que documentariam este período: um deles, A History of Nothing, este gravado no Namouche, deveria ter sido o segundo da fornada, após a edição do concerto na Jazzhouse, em Copenhaga. Acontece que mesmo comparando com esse que foi “o melhor concerto da tour”, Amado descobriu na gravação “um equilíbrio de formas, de espaço e de tensões que não é habitual conseguir-se com a contenção do estúdio e sem o estímulo do público”.

O que se torna igualmente evidente é o quanto o diálogo entre os dois saxofonistas, Amado e McPhee, atinge níveis de transcendência ainda mais elevados. Desde a dança entrançada de Legacies à troca de tiradas rápidas e vivas em que se embrulham em A History of Nothing, torna-se claro o quanto esta relação musical se tornou basilar no percurso do português. E volta a acontecer de uma forma extrema quando em Theory of mind II (for Joe), à semelhança do que acontecia no primeiro disco, McPhee prefere o silêncio, não deixando de habitar intensamente o tema através dessa ausência. Essa relação com McPhee (no contexto deste quarteto) é, aliás, algo que Rodrigo pretende continuar a desenvolver e a documentar ao máximo.

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Dawid Laskowski

O quarteto americano de Rodrigo permite-lhe, naturalmente, explorar possibilidades bastante distintas daquelas que pratica com o Motion Trio, o Wire Quartet ou o trio responsável por The Attic (com Gonçalo Almeida e Marco Franco, trio com que abrirá o Jazz im Goethe Garten, em Lisboa, a 3 de Julho). O saxofonista encontrou nesta formação um dos seus “lugares verdadeiros”. “Cresci a ouvir Ornette Coleman, Tim Berne, cuja música é já uma reconfiguração das raízes americanas. Sempre preferi músicos com fortes raízes nas sonoridades mais puras da origem do jazz, como o gospel e os blues. Neste quarteto tenho a possibilidade de ser completamente esse eu.” É, nesse sentido, também uma declaração de peso. Não que Rodrigo se coloque contra o perfil do jazz europeu, mas afirma antes uma música que quer filiar-se numa linguagem e dispensa a assinatura de uma abordagem abstracta sem ligação à terra, a essas raízes.

É por lhe interessar a ligação às raízes, na música mas também fora dela, que chama para o disco uma citação da última entrevista que José Mário Branco concedeu ao Ípsilon: “É preciso começar tudo de novo, mais uma vez, e é preciso começar pelo que está perto, pelo que está em baixo, no chão. É um trabalho muito mais a partir das questões biológicas, animais, da sobrevivência, do medo, do prazer, das questões básicas”. Foi essa “vontade enorme de recomeçar tudo de novo e retornar aos elementos essenciais” que conduziu Rodrigo Amado até esta música e até ao projecto de fotografia – também intitulado A History of Nothing – consumado numa road trip de três semanas pelos Estados Unidos, com o propósito de documentar “a terra, o céu, as árvores, o deserto, as montanhas, as plantas, a luz”.

A History of Nothing será, por isso, também uma exposição fotográfica daqui por alguns meses (data e local ainda por definir). Por agora, é uma monumental imersão nessa busca por raízes, pela pertença e pela libertação quase espiritual dos excessos do quotidiano.

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