Estado de Direito democrático e social, advocacia e o Congresso dos Advogados Portugueses

Os advogados são, por natureza própria do seu papel social, os primeiros na batalha pelo bem comum e por uma incansável luta por uma sociedade mais justa

A revolução tecnológica contemporânea sucede num período histórico em que as sociedades são mais complexas e contingentes, lidando com poderes difusos, logo que cedidos pelo Estado e por outras autoridades democraticamente controladas. Estes, organizados segundo esquemas orgânicos e processuais conhecidos, cedem poder a entidades e instituições privadas furtivas a escrutínios públicos, que não os de um mercado de perfeição mais do que discutível. A esta fragilização do poder do Estado tem vindo a corresponder um direito complacente, delicado, micro, subjectivo, fragmentado nas suas fontes.

Este pano de fundo não nos remete para qualquer crise, antes para a pertinência de uma reflexão crítica e para a inerente necessidade de uma maior compreensão interdisciplinar da realidade, bem como para uma vivência eticamente conformada e comunitariamente desenhada pela dignidade da pessoa humana.

Este pano de fundo, igualmente, revela, por um lado, a importância do espaço público, enquanto fórum de discussão e confronto das diversas narrativas e razões que cada um assume individual ou comunitariamente. E, por outro lado, a emergência do tribunal como espaço, por excelência, capaz de garantir a coesão social, num Estado de Direito democrático que tem a balizá-lo o artigo 1.º da Constituição da República: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”

É neste mesmo enquadramento que se há-de justificar a função dos juristas, e é particularmente essa a função da advocacia, que se confronta, quotidianamente, com a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Os advogados são, por natureza própria do seu papel social, os primeiros na batalha pelo bem comum e por uma incansável luta por uma sociedade mais justa, equilibrada, onde se pretende que possa materializar-se em pleno a dignidade da pessoa humana constitucionalmente protegida.

E é, também, aquele enquadramento que ilumina a norma constitucional sobre o direito do cidadão a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade. E sublinho, ainda, esse direito pela circunstância de estarem em causa todos e quaisquer direitos, o que pressupõe, ou deveria pressupor, a presença do advogado em todos os espaços em que o cidadão se confronte com a “defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”, como preceitua a nossa Constituição.

Trata-se de um direito fundamental, também ele fundador do Estado democrático, enquanto garante da defesa do cidadão.

É por essa razão que se pode falar de um Serviço Nacional de Justiça, a par de um Serviço Nacional de Saúde e de um Serviço Nacional de Educação, como pilares fundamentais do Estado de Direito democrático e social, coexistentes com a prestação de serviços privados.

Assim, também, o núcleo que se consigna à Ordem dos Advogados, desde logo contemplado no art.º 3.º do seu Estatuto, quando afirma que constitui sua atribuição “defender o Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e colaborar na administração da justiça”. Esta colaboração procede àquela defesa naquele âmbito dual – individual e comunitária. Como, aliás, sucede com a ética-deontológica a que o advogado está obrigado pela sua vontade ao integrar esta profissão: uma ética finalística na defesa eficaz da pretensão do cliente moldada por uma ética de relevante interesse público, como resposta à inquietude que é matricial da profissão.

Esta reflexão permite concluir da importância institucional da Ordem dos Advogados, sem a qual já não existiria a profissão de advogado, ou, pelo menos, já não existiria esta profissão com o seu destino e o seu âmbito. Esta ficaria reduzida pela pressão de uma total e ilimitada concorrência, que os tecnocratas soltaram e arremessaram numa Europa cujos ventos parecem padecer de uma ausência de valores, quer quanto à dignidade da pessoa humana, quer quanto à existência plena de uma profissão milenar que tem como principal função a defesa do outro. E é neste contexto que ganha forma e importância o Congresso dos Advogados Portugueses, que se irá realizar nos dias 14,15 e 16 de Junho, na cidade de Viseu: assim os princípios que regem a nossa profissão não soçobrem ante uma qualquer retórica pré-eleitoral.

Não interessa voltar a palavras gastas nem a ideias como “a crise do direito” (onde tudo cabe e tudo se discute para que tudo fique na mesma), mas antes olhar de frente para a argumentação de uma “crise da advocacia”. Esta não se supera se perdermos o foco da importância da coesão e da participação de todos os advogados. Estes, através da sua Ordem, e profundamente convictos de que o Estado de Direito democrático não pode prescindir da acção dos advogados em todos os locais em que estejam em causa os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos, para que não se possa permitir um Estado de Excepção.

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