Kim e Trump e o destino das Coreias

Trump precisava de mostrar as suas aptidões de negociador e Kim de ganhar estatuto junto da população e no mundo.

A Península coreana está localizada numa zona nevrálgica da Ásia; basta para tanto ter em conta a sua longa fronteira com a China, a Rússia e, por mar, com o Japão. Acresce a esta situação a presença militar dos EUA, com mais de 30 mil militares e armamento nuclear.

A linha divisória das Coreias, no paralelo 38, é a zona mais explosiva do mundo, tanto mais quanto os dois países, outrora um, estão tecnicamente em guerra, pois não assinaram qualquer tratado de paz desde que acabou a guerra da Coreia, vigorando ainda um armistício. A situação é tanto mais grave quanto as partes beligerantes detêm armamento nuclear.

Pude testemunhar em Panmunjom a prontidão e o grau de hostilidade entre as tropas que se encontram frente a frente. Era de arrepiar. Ao menor descuido tudo podia suceder. Até por isso ninguém ousará duvidar que este passo dado por Trump e Kim (seja pelo que seja e pelo que cada um tem em mente) é um sinal que faz diminuir a tensão e faz com que o mundo possa respirar melhor.

Por uma questão de rigor factual e histórico sublinha-se que foi no Sul que se instalaram as armas nucleares e se passaram a realizar exercício militares (Team Spirit) que simulavam o seu emprego. A razão dos EUA é boa de ver – a sua presença era parte integrante da estratégia de confronto com a URSS e China. O Sul ficava assim totalmente dependente da estratégia e arsenal nuclear dos EUA. O Norte só após a implosão da URSS desenvolveu o seu próprio arsenal, o que lhe permitiu negociar tête à tête com os EUA, sem o Sul.

Esta cimeira de Singapura acontece tendo em conta que o Norte pode atingir nuclearmente território dos EUA, as sérias dificuldades económicas devido aos seus problemas e às brutais sanções, a aspiração do Sul a uma clima de estabilidade e ainda a um facto relevante, como é o caso de Trump precisar de apresentar aos EUA e ao mundo um êxito político-diplomático no meio de um mar de críticas. Além do mais, a China a última coisa que desejaria seria uma guerra na sua fronteira ou uma política que leve centenas de milhares de refugiados a entrar no país.

A realização da cimeira deu uma nova visibilidade ao conflito e ao apresentar como objetivo dela emanado a desnuclearização total da Península é altamente positivo. O comunicado é claro e estatui a desnuclearização total, o que implicará um longo processo a que se espera que a ONU se associe em pleno, até para abrir os caminhos mais sinuosos entre os negociadores.

Se Trump precisava de um sucesso, Kim precisa de investimento na sua depauperada economia. Trump prometeu-lhe uma “pipa de massa”... vamos ver.

No Sul é indiscutível que o nível de vida é de outra qualidade. Diga-se que o Norte, outrora campeão da reunificação das Coreias, deixou cair essa aspiração e talvez se perceba. Na defunta RDA a diferença do nível de vida com a RFA era bem diferente e bem se viu o que sucedeu.

Não é despiciendo pensar que os EUA jogam em alterações políticas no Norte, embora não o digam, e até Trump levou o seu feeling de negociador a elogiar Kim e a convidá-lo para a Casa Branca, mas toda a gente sabe que o que Trump diz é como o que dizia Frei Tomás.

O regime dinástico do Norte não está em condições de se abrir em larga escala sob pena de eventual implosão. Talvez o caminho da China nos anos da abertura parcial em certas zonas sirva de paradigma.

O problema maior é o grau de concentração do poder num núcleo familiar restrito que numa nova situação política pode enfrentar problemas. Atente-se neste pormenor: o Presidente da RDP da Coreia é o falecido avô do atual líder, que é Presidente dos Assuntos do Estado...

Com maior comércio entre ambos os países e fluxo entre eles e a própria China (mesmo limitado), as coisas podem vir a alterar-se.

A China conseguiu fazer essa travessia, apesar de Tiananmen, e é hoje a segunda potência mundial.

Os coreanos são um povo abnegado, cultivando historicamente a obediência aos seus dirigentes. Porém, como em tudo na vida, há limites.

Neste complexo exercício, o peso da realidade impôs-se a Kim, Trump e até Moon, que não esteve, mas gostaria de ter estado, em Singapura.

Trump precisava de mostrar as suas aptidões de negociador e Kim de ganhar estatuto junto da população e no mundo.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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