“Dêem à Coreia do Norte todo o prestígio que ela quer”

Afastada a opção militar, os EUA deverão inventar um modo de coexistência com o país de Kim e o seu nuclear.

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Quando, em Março, Kim Jong-un propôs uma cimeira a Donald Trump, escreveu o “realista” americano Stephen W. Walt: “Dêem à Coreia do Norte todo o prestígio que ela quer.” Eis o que resume Singapura. Kim passou a ser “respeitável”. O prestígio é uma coisa séria nas relações internacionais e muito mais para um Estado “pária” e isolado no mundo. O prestígio, lembra Walt, não é uma qualidade que alguém possa conferir a si mesmo: é algo que se obtém dos outros. Foi o que Trump ofereceu a Kim. Após um ano marcado por trocas de insultos e ameaças, e por cenários de guerra, esse gesto reabre a via diplomática.

Também Trump cobrou os seus dividendos: mostrar aos americanos que vai resolver o problema norte-coreano de forma rápida e definitiva, graças às suas extraordinárias capacidades negociais. No entanto, tal solução rápida e definitiva está por demonstrar e suscita cepticismo. É um elevado risco inflacionar as expectativas.

A cimeira foi justificada pela necessidade de “construir relações de confiança” e pessoais. “Penso que ele [Kim] confia em mim e eu confio nele”, disse Trump. “Quis parar os jogos de guerra [exercícios militares com a Coreia do Sul], penso que são provocatórios.” É um adjectivo que Kim subscreveria.

Em termos de substância, houve uma mera troca de promessas. Quando Nixon surpreendeu o mundo em 1972 com a visita à China, fê-lo após dois anos de negociações secretas e de uma minuciosa preparação (Tiago Moreira de Sá, PÚBLICO de 11 de Junho). Trump inverte o método de Nixon e Mao. Por isso a cimeira não tem um conteúdo substantivo. Prevêem-se negociações tortuosas.

As incertezas

Os dois líderes partilham um método: a ideia de que a imprevisibilidade é a chave da negociação. “A ameaça dos EUA [“o fogo e a fúria”] pode ser um bluff, mas com Trump nunca se sabe”, advertiu o Washington Post no auge da crise em 2017. Também Kim se mostrou especialista em utilizar a imprevisibilidade como arma psicológica. A ameaça de atacar os EUA era um bluff, pois o seu país e a dinastia Kim seriam aniquilados. Mas o bluff funcionou como forma de tornar credível a posse de uma arma de dissuasão perante os americanos. E também “com Kim nunca se sabe.”

Note-se que nenhum dos actores era irracional, embora fizesse parte do arsenal retórico de ambos passarem por “loucos” e impulsivos. Tinham antes racionalidades diferentes, facto que agora vai voltar a ser manifesto. Doravante, a arma da imprevisibilidade vai perder importância. Qualquer resultado implica inevitavelmente um longo e lento processo negocial que, ao contrário do que Trump gosta, acabará num quadro multilateral, envolvendo os países da região. O fim da Guerra da Coreia passará pelo Conselho de Segurança da ONU, que a declarou em 1950. A China viu aumentar, irreversivelmente, a sua influência na questão coreana, o que faz de Pequim um vencedor da cimeira de Singapura.

Os EUA e a Coreia do Norte partem para o novo processo com percepções e objectivos opostos. Trump terá a expectativa de obter a desnuclearização “completa e verificável” da Coreia do Norte em troca de relações diplomáticas, de ajuda económica e da redução da sua presença militar na Coreia do Sul.

Kim conta poder conservar o seu nuclear em troca de uma mudança de comportamento, agora que a ameaça militar é mais difícil. “Se a Coreia do Norte concordasse em desarmar-se, depois de à sua própria custa ter obtido uma capacidade termonuclear intercontinental, seria um acto sem precedentes”, resume o americano Alex Wellerstein, historiador do nuclear.

A nova “relação de confiança” é muito precária. Pyongyang tem um longo cadastro de violação de acordos sobre o nuclear e de actos de banditismo. Também a credibilidade de Trump é duvidosa. Pyongyang não esquece os precedentes da Líbia e do Iraque. E a perspectiva de Trump vir a romper o acordo nuclear com o Irão redobra a desconfiança norte-coreana. A arma nuclear é o seguro de vida da dinastia Kim. Sem ela, de resto, não teria havido a cimeira.

Unilateralismo, sempre

Singapura será saudada como um regresso à via diplomática. A China está contente. Os outros vizinhos da Coreia do Norte, de Seul a Tóquio, estão preocupados. Não pela cimeira, mas por Trump não ter tido minimamente em conta os seus interesses. É a nova regra americana, não a excepção. Precisa a América de aliados quando parece apostar no exercício unilateral do poder?

É interessante notar que a lógica de Trump na cimeira do G7 e em Singapura obedece ao mesmo princípio do unilateralismo e da diplomacia ad hoc. A “nova desordem mundial” não nasceu com Trump, mas a sua Administração está a estimular a desordem para destruir o que resta da “ordem” e reforçar o seu posicionamento internacional. Last but not the least: grande parte da acção de Trump guia-se por considerações domésticas e pela reacção da sua base eleitoral. Anotou no PÚBLICO (13 de Junho) Carlos Gaspar que a questão coreana pode vir a definir o seu mandato. O que “provavelmente, garante a sua reeleição.” Seria aventuroso menosprezar esta afirmação.

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