"É difícil trabalhar assim. Não tenho respostas formais da câmara"

Marisa Quaresma dos Reis é Provedora dos Animais de Lisboa desde Setembro e já fez várias recomendações à câmara, mas a burocracia tem travado iniciativas. Como a das famílias de acolhimento temporário ou a de um serviço municipal de veterinário gratuito.

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Marisa Quaresma dos Reis é a terceira provedora. As suas antecessoras não cumpriram o mandato até ao fim Nuno Ferreira Santos

Vai abrindo uma a uma as portas das três assoalhadas num edifício camarário da Rua do Ouro que dão pelo pomposo nome de Provedoria dos Animais de Lisboa. Na primeira está uma funcionária, a segunda é uma sala de reuniões vazia e a terceira o seu próprio gabinete de trabalho. É só isto, duas mulheres e três salas. Investigadora da Faculdade de Direito de Lisboa, a única Provedora dos Animais do país fez carreira nas leis. Chegou a exercer como procuradora na Graciosa e no Alentejo. Com 38 anos, cabe-lhe defender os bichos que povoam a cidade.

Uma das recomendações que apresentou à câmara passa pela criação de um serviço municipal de veterinário gratuito ou a preço reduzido. Vai existir?
Há a possibilidade de a câmara aderir à proposta da Ordem dos Veterinários do cheque veterinário - embora pense que sairiam mais baratas parcerias com as associações zoófilas, que são muitas. Disseram-me que esta minha proposta seria acolhida através do cheque veterinário municipal. Mas até agora não sei mais nada. Tanto quanto sei não é tradição da câmara responder. 

Quer dizer que as suas recomendações nunca mereceram resposta?
Não. Dizem-me "Sim senhora, vamos avançar com isto", mas não fica nada escrito.  É difícil trabalhar assim, de facto é. Fiz uma recomendação para ser lançada uma campanha de esterilização de animais de particulares e não tenho qualquer resposta. Ora, as famílias mais carenciadas cujos animais andam pelas ruas ou matam as ninhadas ou as abandonam. Ou então ficam com elas, sem condições para cuidar delas.

A capacidade da Casa dos Animais, que é municipal, não está já ultrapassada?
Está: tem capacidade para 170 cães e estão lá 200, pelas estatísticas de Março. 

O que sucede a um cão que esteja na rua neste momento em Lisboa?
Ou lhe arranja uma família de acolhimento temporário ou fica na rua.

Essas famílias já existem?
O que não existe ainda é o programa de famílias de acolhimento temporário que vão trabalhar com a Casa dos Animais, proposta que fiz a 1 de Outubro passado mas que ainda não está no terreno. Toda a máquina burocrática da Câmara de Lisboa, que é muito pesada, teve de ser agilizada e estamos a afinar o regulamento do programa. Percebi que há vontade política de não atrasar mais o processo, até porque há famílias de acolhimento disponíveis que estão só à espera que ele arranque. Todo o tratamento médico-veterinário é fornecido pela Casa dos Animais e a comida também é oferecida pela câmara. A pessoa pode ficar com o animal até aparecer um tutor definitivo. Tem de ter espaço em casa, não pode ter mais de quatro a seis animais e tem de apresentar registo criminal. Não pode ter sido condenada por crimes violentos. 

Mas a Câmara de Lisboa é sensível aos animais? Está a falar de uma recomendação do início de Outubro, passaram sete meses.
Tenho lidado com pessoas muito sensíveis aos animais, mas é muito difícil comunicar dentro da Câmara de Lisboa. O tempo de resposta às nossas solicitações tem sido muito grande. Passa por muita gente, é necessária a assinatura de mais do que uma pessoa, mais os pareceres do departamento jurídico ou da higiene ou segurança no trabalho... Nós na Provedoria adoraríamos ser a primeira família de acolhimento temporário do programa trazendo um casalinho de gatos para o gabinete, mas ainda não tenho resposta para isso. Até já tinhamos nome para eles: a Lisboa e o Alface.

Segundo o seu relatório de actividades, pediu uma reunião ao vereador Ricardo Robles [Educação e Direitos Sociais] em Setembro que só aconteceu este mês [Maio]. O que se passou?
Não sei explicar, terá de perguntar-lhe a ele. Mas estes tempos de resposta tornam o trabalho de qualquer pessoa muito moroso. Passam a imagem de que é a Provedoria que não dá resposta às solicitações. É uma cadeia tão grande de responsabilidades, é tudo tão formal e burocrático que as coisas se perdem. E claro que há assuntos mais prioritários que outros. Tudo o que implicar direitos sociais será, para a vereação de Ricardo Robles, prioritário. O que se consegue compreender.

E os animais são-no?
Sendo a câmara pioneira na criação da Provedoria dos Animais, tenho de dizer que sim. Agora se estão a saber gerir essa prioridade, a colocá-la no sítio certo, não sei. A anterior provedora também se queixava de dificuldades de comunicação interna. 

Nenhuma das suas antecessoras terminou o mandato. A última foi-se embora por falta de meios para trabalhar. Esses meios já existem?
São muito escassos. O gabinete é neste momento composto por mim e por uma assistente administrativa. Existe uma terceira pessoa mas está de baixa. Pedi mais dois técnicos em Março. 

A principal dificuldade com que se confronta é a burocracia camarária?
É.

Quantas denúncias recebe por mês e sobre que assuntos?
Houve um mês em que recebi 50 e tal denúncias, noutro recebi 12. Quando recebo muitas estão normalmente quase todas relacionadas com os mesmos assuntos:  o abate de pombos, ou com a utilização de animais na mendicidade.

As forças de segurança e as autoridades judiciais estão consciencializadas para o fenómeno dos maus tratos?
Há muito mais sensibilidade do que em 2014, ano em que os maus tratos se tornaram crime, mas ainda não é suficiente. Vamos organizar em Setembro uma acção de formação com o Centro de Estudos Judiciários, com a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária e com a Ordem dos Veterinários destinada às forças policiais e aos magistrados. Servirá para definir uma espécie de guia de boas práticas, para existir alguma homogeneidade ao nível da investigação deste tipo de crimes - uma vez que há entendimentos muito diferentes sobre a lei dos maus tratos. Que de facto podia estar melhor redigida, criando constrangimentos nos tribunais e nas forças policiais. 

As polícias ainda hesitam muito em entrar em propriedade privada para salvar um animal em perigo.
Se essa actuação não for validada sujeitam-se a processos disciplinares. A entrada em propriedade privada tem uma moldura penal superior à dos maus tratos. Ainda há um mês, num bairro social nas Olaias, um gato ficou emparedado com cimento numa obra e a polícia recusava-se a partir a parede porque quando lá ia não o ouvia miar. Até que um cidadão comum a deitou abaixo e o animal saiu de lá de dentro.

Notícia corrigida: corrige a idade da provedora e a região do país em que trabalhou anteriormente (Alentejo e não Algarve); esclarece-se que a acção de formação aludida no 13º parágrafo não tem relação com a Faculdade de Direito de Lisboa

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