O estranho mundo das cativações nos reguladores

As entidades reguladoras independentes lidam com as cativações orçamentais de forma diferente e nem todas recebem o mesmo tratamento por parte da equipa de Mário Centeno.

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LUSA/MIGUEL A.LOPES

As entidades reguladoras estão unidas nas queixas às cativações de Centeno, mas a forma como reagem e são afectadas por estas restrições orçamentais e as respostas que recebem das Finanças são distintas.

Haverá entre as entidades reguladoras independentes, algumas mais independentes do que outras? A certeza é que nem todas lidam com as cativações orçamentais impostas pelo Ministério das Finanças desde 2017 da mesma maneira, e nem todas recebem o mesmo tratamento por parte da equipa de Mário Centeno.

Todas estão de acordo que a Lei-quadro das entidades administrativas independentes e os seus próprios estatutos as deixam fora do âmbito de aplicação do regime de cativações, porque têm autonomia financeira. Fora isso, nem todas adoptam a mesma estratégia para lidar com as restrições impostas para conter a despesa pública.

Há quem anule cativações por sua livre iniciativa, há quem peça autorização para descativar e embata no “muro de silêncio” das Finanças, há quem consiga resolver o problema com “diálogo” e há ainda quem tenha, ao contrário da maioria, deixado de ser sujeito a cativações.

O tema ganhou contornos de arma de arremesso político com os requerimentos que o CDS-PP começou a enviar em Abril aos reguladores depois de a presidente da Autoridade da Concorrência (AdC), Margarida Matos Rosa, ter admitido numa audição parlamentar que a falta de verba impediu duas operações de busca em investigações a práticas ilícitas na contratação pública.

As respostas que têm estado a chegar à Assembleia da República e os testemunhos recolhidos pelo PÚBLICO demonstram diferenças na forma como o tema é tratado pelos reguladores e na forma como os seus pedidos são atendidos pelas Finanças. Na prática, todas as entidades consideram que têm a lei do seu lado, e que o facto de não receberem verbas do Orçamento do Estado (pois têm receitas próprias, financiadas pelos regulados e pelos consumidores e, no caso da AdC, pelos restantes reguladores), faz com que não lhe sejam aplicáveis as “regras da contabilidade pública e o regime dos fundos e serviços autónomos” da Administração Central. Nomeadamente “as normas relativas à autorização de despesas, à transição e utilização dos resultados líquidos e às cativações de verbas”. No entanto, até à data, só a Anacom reconheceu ter cancelado de forma proactiva as cativações feitas pela Direcção-geral do Orçamento (DGO).

A entidade liderada por João Cadete de Matos explicou aos deputados que lhe foram cativados 6,432 milhões de euros em 2017 e que em Março “procedeu ao cancelamento” dessas cativações no Sistema de Gestão Orçamental da DGO (o SIGO) por entender que “não lhe eram aplicáveis”. Porquê? Porque são “incompatíveis com o direito da União Europeia e com a garantia constitucionalmente consagrada de existência de uma regulação económica independente”. Em Outubro, o secretário de Estado do Orçamento “confirmou a descativação”. Este ano, a DGO fez cativações de 3,11 milhões de euros que a Anacom cancelou em Janeiro (e “já deu conhecimento” disso aos secretários de Estado do Orçamento e das Infra-estruturas).

Experiência diferente tem a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT), que diz haver “risco sério, imposto pelo leque de restrições orçamentais e autorizações prévias” previsto no OE, “de captura e de forte condicionamento” da sua actividade (até porque “parte significativa” dos pedidos feitos ao Governo, “ficam sem resposta”).

A entidade presidida por João Carvalho tem 28% do orçamento bloqueado, num total de 6,5 milhões de euros (mais 27% face aos 5,1 milhões de 2017). No ano passado, as cativações impediram o recrutamento de técnicos e limitaram as fiscalizações e auditorias nos transportes de mercadorias e passageiros, centros de inspecção técnica de veículos, escolas de condução e centros de exame. Ouvido no Parlamento em Maio, João Carvalho contou que a AMT teve de suspender o observatório de preços e estratégias empresariais para pagar salários e não conseguiu liquidar “as rendas, a energia e a água” nos últimos três meses do ano, fazendo-o apenas em Janeiro. Também houve uma auditoria aos transportes marítimos nos Açores que, pela impossibilidade de deslocar três técnicos, se fez por correspondência. O regulador lamentou ainda que a única autorização de descativação  – três milhões de euros – tenha sido não para suprir necessidades da AMT, mas para financiar o Fundo para o Serviço Público de Transporte.

No entanto, para a AMT, ainda “mais grave” que as cativações foi a disposição orçamental que impediu que a despesa realizada em 2017 fosse superior à de 2016. Esse foi o ano em que a AMT iniciou a sua actividade e, por isso, a despesa realizada “foi muito pequena”. A AMT pediu que fosse “feita uma excepção” no seu caso específico, “mas da parte do Ministério das Finanças houve uma grande insensibilidade para resolver o problema”.

A AdC também relatou aos deputados a dificuldade no pagamento de rendas e salários a tempo e horas. A entidade só conseguiu regularizar em Novembro o pagamento de abonos em falta desde Maio, depois de uma “autorização de descativação parcial (exclusivamente em despesas com pessoal)”, de 1,5 milhões. No ano passado, a AdC viu retidos 1,9 milhões de euros (19% das despesas orçamentadas) e estima que este ano as cativações afectem 23% do orçamento, num total de 2,7 milhões (mais 40%).

Tal como a Anacom, também a ERSE alude à legislação europeia para demonstrar que está fora do alcance das cativações. A entidade presidida por Cristina Portugal assegurou que “as cativações não tiveram repercussão” no seu orçamento porque este “é constituído exclusivamente por comparticipação dos consumidores de eletricidade e de gás natural e portanto, totalmente independente do OE”. Nesse sentido, “de que a ERSE não está sujeita às limitações impostas às entidades cujos orçamentos estão integrados ou dependem do OE, encontram-se os pareceres do Conselho Consultivo da ERSE, o entendimento transmitido pelas sucessivas tutelas e, ainda, as próprias diretivas comunitárias” dos sectores da energia, frisou. Segundo informações recolhidas pelo PÚBLICO, em 2017 foram cativados à ERSE 900 mil euros, que foram descativados, e em 2018 não houve restrições orçamentais.

Menos sorte teve a Entidade Reguladora das Águas e dos Resíduos (ERSAR), que desde o início do ano já leva mais de 13% das receitas cativadas. O cativo para este ano são 550 mil euros e em 2017 foram 1,92 milhões (26,9% das receitas), embora tenha havido uma autorização para descativar cerca de 594 mil euros para pagar ordenados. A entidade liderada por Orlando Borges aguarda resposta a um pedido de descativação feito em Maio, que o Ministério do Ambiente autorizou, mas que agora depende do OK das Finanças.

“Ainda que a ERSAR cumpra com a aplicação das cativações”, entende que o regime “não é” compatível com a Lei-Quadro dos reguladores, porque “é contraditório e contrário ao regime de independência” dos reguladores. Tal como o facto de o Governo não autorizar que os saldos de gerência acumulados de um ano para o outro sejam usados em benefício do sector regulado (permitindo baixar as taxas cobradas, por exemplo).

A impossibilidade de dispor dos seus saldos de gerência “configura uma situação que não é bem entendida pela ERSAR”, admitiu o regulador das águas e resíduos, que tinha, no final de 2017, 13,6 milhões de euros imobilizados no IGCP (a agência que gere a tesouraria do Estado).
A Autoridade Nacional para a Aviação Civil (ANAC) não respondeu às questões do PÚBLICO (nem a ASF - Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões), mas, no início de Maio, o presidente, queixou-se no Parlamento de estar condicionado nas verbas para aquisição de bens e serviços e dependente da autorização das Finanças para realizar novos contratos.

“Queríamos lançar uma campanha sobre as regras de utilização dos drones”, mas a autorização ainda não chegou, exemplificou Luís Ribeiro. “Estamos expectantes de que possa surgir a tempo de ser eficaz no início do Verão”, que é quando os incidentes são mais frequentes, disse. A ANAC também está preocupada com a possibilidade de deixar de haver papel para emitir as licenças dos pilotos ou a impossibilidade de mandar equipas de quatro ou cinco inspectores para fora de Lisboa por dois ou três dias, porque não consegue renovar a frota automóvel e os carros existentes têm “quilometragem excessiva” e são demasiado pequenos para acomodar pessoas, bagagens pessoais e equipamentos. “Temos encontrado do lado do secretário de Estado das Infra-estruturas toda a boa vontade para tentar desbloquear as situações [com as Finanças], mas em termos de resultados práticos temos ficado aquém”, reconheceu Luís Ribeiro.

A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) reconheceu que “o diálogo com as entidades responsáveis”, aliado aos “ajustamentos da gestão” tem permitido “encontrar soluções para mitigar o impacto” das restrições orçamentais. Sem detalhar os montantes exactos das cativações de 2017, nem confirmar se foi alvo de restrições em 2018, a entidade liderada por Gabriela Figueiredo Dias respondeu que “as cativações limitam, naturalmente, a capacidade de gestão e de decisão das entidades a quem sejam aplicadas, sendo essa limitação tanto mais relevante quanto mais restritivo é o orçamento da entidade em causa”.

A Entidade Reguladora da Saúde (ERS), presidida por Sofia Nogueira da Silva, garante que as cativações “comprometem a [sua] independência”. No ano passado, as cativações chegaram aos 1,375 milhões de euros (23% do orçamento) e este ano já vão em 761 mil euros (9% do orçamento). Em Janeiro a ERS foi informada que o pedido de descativação feito em Junho do ano passado às Finanças (onde destacava o facto de as cativações serem “incompatíveis” com o “regime de autonomia financeira plena” em que se insere) foi arquivado sem nunca ter tido resposta.

Além dos cativos, a ERS queixa-se que o orçamento que propôs aos ministérios da Saúde e das Finanças levou um corte de 1,5 milhões de euros na rubrica com pessoal (30% do valor orçamentado). Isto sem que tenha sido “informada, de forma fundamentada e à revelia” do disposto na Lei-quadro dos reguladores e dos estatutos das razões para esse corte. Estão por fazer 27 contratações relativas a 2017 e a ERS prevê que tenham de ser adiadas outras 30 previstas para este ano.

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