Repetição de erros históricos mais improvável com recurso ao videoárbitro

A “mão de Deus” de Maradona, em 1986, ou o golo-fantasma de Lampard, em 2010, ficaram eternizados na memória do futebol. Na Rússia, com a introdução do VAR, esses erros flagrantes podem ter os dias contados.

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Golo de Lampard entrou mas não foi validado pelo árbitro, no Mundial de 2010 REUTERS/Eddie Keogh

Em média, um árbitro de futebol toma 245 decisões por jogo e, desse número, apenas erra cinco. Mas, no maior palco desportivo do planeta, um único erro pode ter consequências tremendas na vida de um árbitro profissional ou de um país que falhe a passagem para a eliminatória seguinte. Por esse motivo, o jogo inaugural do Mundial da Rússia, disputado entre o país anfitrião e a Arábia Saudita, marcará a estreia do videoárbitro (VAR) na maior competição de futebol a nível internacional.  

Duarte Gomes, ex-árbitro internacional, fez parte dos primeiros testes ao sistema e confirma ao PÚBLICO a sua concordância com a decisão da FIFA de utilizar o VAR no Mundial: “Sou a favor da tecnologia. Os erros mais evidentes, aqueles que chocam, são os que podem ser revertidos”. O juiz afirma que muitos dos erros cometidos se deviam, justamente, à junção entre a rapidez do jogo e a impossibilidade de analisar certos lances com mais calma: “Até o adepto de futebol conseguia, em sua casa, ver as repetições. E o árbitro, aquele que tem de decidir, não possuía outros meios de decisão”.

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Duarte Gomes foi árbitro de baliza, na final do Euro 2012 Adriano Miranda

Apesar da pressão, Duarte Gomes diz que é mais fácil arbitrar uma partida internacional do que no próprio país, devido ao maior fair-play das equipas e ao número mais baixo de cartões por jogo. Mas, em caso de erro, as consequências podem ser fatais para a carreira de qualquer profissional.

“Maradona arruinou a minha vida”

“Apesar de ter sentido que havia algo de irregular, naquele tempo, a FIFA não permitia que os auxiliares discutissem as decisões com os árbitros [principais]”, explicou o auxiliar búlgaro Bogdan Dochev, relativamente ao golo que ficou popularmente conhecido como “a mão de Deus”. Diego Maradona, nos quartos-de-final do Campeonato do Mundo de 1986, realizado no México, disputa uma bola nas alturas com o guardião inglês Peter Shilton, nos minutos iniciais do segundo tempo. Apercebendo-se de que não conseguiria chegar à bola antes do guardião, Maradona estica ligeiramente o braço esquerdo e, com um ligeiro toque com a mão, coloca o esférico fora do alcance do guarda-redes britânico e faz o primeiro golo da partida. 

“Maradona arruinou a minha vida. Ele é um futebolista brilhante mas um homem pequeno. Ele é pequeno em estatura e em carácter também”, lamentou Dochev aos órgãos de comunicação social da Bulgária. Aquele que é, muito provavelmente, o golo mais conhecido da história significou o ponto final da carreira internacional do árbitro principal da final de 1986, o tunisino Ali Bin Nasser que, após o golo, correu lentamente para o centro do terreno, olhando fixamente para o árbitro auxiliar: “Estava à espera que Bogdan Dochev me dissesse exactamente o que tinha acontecido, mas ele não deu sinal de mão na bola”, justificou o juiz do encontro. O golo contou, a Argentina venceu a taça e os ingleses sentem-se injustiçados até este dia.

O golo-fantasma de Lampard na África do Sul

Em 2010, no Mundial da África do Sul, uma decisão — que prejudicou novamente os ingleses — forçou a FIFA a repensar a sua posição em relação à tecnologia de linha de golo, introduzida no Mundial que se seguiu ao incidente. Nos oitavos-de-final da competição, a Alemanha defrontava a Inglaterra. Num momento em que o jogo estava 2-1 a favor dos alemães, Lampard fez um chapéu a Manuel Neur. A bola embateu na parte inferior da barra, desceu, bateu dentro da baliza, voltou a bater na barra e Neur conseguiu finalmente agarrar o esférico.

O uruguaio Jorge Larrionda, árbitro principal, mandou seguir. As imagens televisivas não deixaram dúvidas em relação à validade do golo e fãs, jogadores e comentadores vociferaram o seu descontentamento para com a decisão: “O que é que a FIFA não quer? Tecnologia de golo. Obrigadinho Sepp Blatter!”, disparou de forma irónica Mark Lawrenson, comentador da BBC.

Frank Lampard, numa entrevista dada aquando do Mundial 2014, reconheceu a importância daquele lapso para o avanço tecnológico na modalidade: “Mudou o jogo para melhor, e estou feliz por isso. A introdução da tecnologia da linha de golo, no geral, é uma medida positiva para o futebol”. A Alemanha acabaria o Mundial de 2010 em terceiro lugar. Jorge Larrionda foi afastado da competição e terminou a sua carreira no ano seguinte, aos 43 anos. Nunca falou com a imprensa sobre essa fracção de segundo que acabaria por definir a sua longa carreira na arbitragem.

Na Rússia, videoárbitro e tecnologia da linha de golo juntam-se, com o objectivo de reduzir a polémica e evitar que erros com influência directa no resultado se voltem a repetir. Gravadas na memória dos adeptos, ficarão para sempre as decisões erradas que chocaram, enfureceram ou encheram de alívio os países que disputam a maior competição do planeta.

Texto editado por Jorge Miguel Matias

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