Uma pequena ilusão: a simplicidade com que se propõe uma carreira universitária única

Propor que com a junção das carreiras universitária e científica se vai resolver o problema de fundo é ignorar o percurso feito nas últimas décadas.

Jean Renoir criou em 1937, há mais de 80 anos, a propósito da fuga de dois prisioneiros franceses através da Alemanha durante a 1.ª Guerra Mundial, o filme A Grande Ilusão, que retrata, através das figuras de Jean Gabin e Erich von Stroheim, o quadro das tensões, dos conflitos e também dos compromissos sociais e humanos que a Europa ainda hoje enfrenta. As duas nações que se digladiavam nos campos de Verdun não eram constituídas por populações homogéneas, havia aristocratas e gente do povo de ambos os lados das barricadas que tinham afinidades transnacionais que as uniam, em grupos bem distintos, por razões económicas e culturais, baseadas em séculos de história com lutas políticas gravíssimas e sanguinárias.

A universidade tal como a vivemos hoje é uma invenção europeia, fruto de muitos conflitos e de uma crença profunda no progresso através do conhecimento, que floresce agora nos cinco continentes, alicerçada em dois grandes pilares: uma investigação científica de qualidade, reconhecida internacionalmente, e a necessidade de garantir uma qualificação de nível superior relevante para um número crescente de jovens, em todo o mundo.

Na história da democracia portuguesa este crescimento é muito recente e só há poucos anos conseguimos que a aristocracia universitária, constituída nalguns casos por académicos notáveis, “os grandes mestres”, não obstante a purga política da década de 40, assumisse a investigação científica como o elemento essencial do desenvolvimento da universidade. Essa mudança de mentalidade deve-se a José Mariano Gago e a sua obra deve ser lembrada. O que se seguiu foi um desabrochar de talentos científicos por todo o país, muito para lá da chamada aristocracia universitária. Foram para as trincheiras da investigação científica jovens, sobretudo cada vez mais mulheres, que fizeram, e fazem, da ciência a sua vida. Claro que muitos ensinam o que sabem fazer como investigadores, mas será que essa prática, tão natural, responde à segunda necessidade de garantia de uma qualificação relevante num contexto de massificação do ensino superior?

A universidade portuguesa do século XXI, do Minho ao Algarve, dos Açores à Madeira, é constituída por instituições onde se faz ciência de qualidade e ensino de bom nível e essa responsabilidade pela viabilização do funcionamento deve ser estatal, no caso das universidades públicas, mas pertence também a quem dirige a instituição. O futuro prepara-se, em qualquer universidade europeia, ou global, com dez anos de antecedência, tendo em conta as pessoas e os recursos existentes, e Portugal não deve ser exceção. Foi para isso que o Regime Jurídico do Ensino Superior criou Conselhos Gerais com membros da sociedade civil e académicos responsabilizando-os, a par dos reitores, pela viabilização das estratégias universitárias, a médio e a longo prazo. O desafio institucional deve centrar-se em criar condições para uma maior interligação entre as carreiras e também em possibilitar uma maior diversificação das opções profissionais ao longo da vida. Claro que já existem exemplos individuais de casos de sucesso, mas o apoio institucional para que tal suceda ainda é muito reduzido.

Um outro fator a ter em conta no século XXI, que os compromissos entre as elites transnacionais ou as vitórias, ou derrotas, das lutas de classes não podiam prever no início do século XX, foi este papel crescente da sociedade civil como parceira das universidades no desenvolvimento económico e social. Abordar a questão das carreiras, na universidade ou na ciência, de uma forma estanque e corporativa é importante para quem está em situação precária ou em fase de estagnação e esse problema deve ser enfrentado com coragem e sentido de responsabilidade por todas as partes envolvidas, a começar pelos dirigentes universitários, mas propor que com a junção das carreiras universitária e científica se vai resolver o problema de fundo que é definir o papel da universidade no nosso futuro coletivo é ignorar o percurso feito por universidades, centros de investigação e institutos politécnicos durante as últimas décadas e criar, através de uma mera fusão contabilística, porque é disso que se trata, uma pequena ilusão, reveladora de um profundo desconhecimento dos modelos de contratação dos académicos (universitários e cientistas) nas melhores universidades do mundo. Estou certo que Jean Renoir não compraria o argumento porque talvez visse, antecipadamente, o filme.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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