Onde se fala de naus, de Domingos Paes, do kroncong e do politicamente correcto

Será que dizer “expansão” e não “ocupação” é uma falsidade ou um branqueamento protocolonial?

Dois interlocutores na Indonésia, encontrados por acaso na rua e percebendo que eu era português, mostraram-me claramente, mais uma vez, o interesse muito relativo da nossa discussão pública mais recente sobre o que fazer ao certo com a memória da expansão portuguesa e da colonização a propósito da criação de um museu.

Do que percebo, de um lado há quem não aceite o esquecimento de uma dimensão violenta dessa expansão, mas parece querer limitá-la a isso. Do outro, mais por irritação epidérmica do que certamente por convicção, há quem apresente a história como se tivesse 5 anos e vivesse em ébrio permanente no Portugal dos Pequenitos. Ora, sem grande filosofia, acredito que qualquer história, feita de factos e de interpretações, para mais com uma pretensão de “oficial”, têm de incluir a pluridimensionalidade que somos hoje capazes de encontrar nela, sem branqueamentos e sem zonas proibidas. Mas igualmente sem dogmas e sem falsas pedagogias, seja de um lado ou do outro. Será que dizer “expansão” e não “ocupação” é uma falsidade ou um branqueamento protocolonial? O seu reverso não o poderá ser também? Porque o verdadeiro valor desta nossa história é hoje não ser só nossa. Não pode ser portanto simplesmente nem uma história de acumulação de cobiças à custa de escravos e de povos colonizados nem uma história de como se fez um Império e levou a boa nova da civilização e de Cristo aos indígenas enquanto se rezava pela conversão da Rússia.

Antes da Indonésia, já antes, em Malaca, tinha visitado o melhor museu que conheço sobre a expansão portuguesa e a história da presença no Oriente, construído dentro de uma nau portuguesa que as autoridades locais resgataram do oceano e recuperaram.

Não me apercebi de grandes intervenções ou apoios portugueses a este museu na Malásia, o que diz bastante também sobre como a presença histórica portuguesa é vista por lá: como parte da sua história e não apenas uma história estranha, de outros. E talvez não fosse má ideia alguém lá ir ver esta nau exótica antes de se inaugurar mais uma qualquer Real Barraca em Lisboa. Até porque, se temos todos a ideia de que sabemos muito bem o que é uma nau, não temos é nenhuma nau em Portugal para conhecer e confrontar o mito com a verdade. E, já agora, uma nau do século XVI é um objecto muito impressionante.

Ao visitar a antiga cidade de Hampi, Índia, capital do império Vijayanagara, que é só um dos locais mais extraordinários que existirá – imagine-se as ruínas de uma enorme cidade que acolhia mais de um milhão de pessoas e que foi praticamente abandonada no final do século XVI, após derrota dos seus governantes –, surpreendi-me também com o facto de, no museu local, quase todos os relatos que descrevem aquela metrópole antes do seu fim serem de cronistas portugueses, usados profusamente como as fontes que enquadram os visitantes na história deste sítio.

São autores que não conhecemos hoje. Antes do Lonely Planet, havia Domingos Paes, Duarte Barbosa, Fernão Nunes, anunciados como Portuguese travellers do século XVI pelo “reino de Bisnaga”, e são eles quem os indianos do século XXI escolheram para contar esta sua história (https://ia800200.us.archive.org/8/items/chronicadosreisd00nune/chronicadosreisd00nune.pdf).

E, finalmente, os meus recentes encontros de rua na Indonésia, que me ensinaram que, no quotidiano de alguns (e a História que triunfa sempre é a que conhecemos sem precisar de historiadores), Portugal é afinal uma língua e uma canção.

O primeiro, em Jakarta, guarda de um sextante no museu marítimo, ao ouvir o nome Portugal, diz-me sem emoção que eu devo falar bahasa, porque muitas das suas palavras vêm do português. E de seguida enuncia-me, de rajada, as suas referências nacionais: Ana Gomes, Vasco da Gama, Cristiano Ronaldo. Golo de bicicleta.

O segundo, numa esquina de Jogyakarta, insistiu muito – muito mesmo – que os Portugueses ali tinham estado entre o século XII e o século XIII... E anunciou-me a existência do kroncong (lê-se “crotchong”...), algo que eu devia conhecer, por ser uma música tradicional indonésia. Isto é, uma herança dessa longínqua presença portuguesa.

Não se encontra facilmente no Spotify, mas está lá. Ouvi primeiro numa rádio de Jogyakarta. E de facto, ao ouvir-se, podia ser fado (https://www.youtube.com/watch?v=-DbvINC_uZo). Embrulha. E leva para Portugal.

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