Contra o esquecimento, os factos

Comecei e terminei por Alcindo, porque esquecer as vítimas seria contribuir para a injustiça.

Na passada sexta-feira escrevi sobre os 23 anos dos ataques racistas do 10 de Junho de 1995, nos quais foram vítimas pelo menos uma dezena de pessoas pela simples razão de serem negros (ou não-brancos), entre os quais Alcindo Monteiro, cidadão português nascido em Cabo Verde que foi assassinado e que teria hoje 50 anos.

Comecei e terminei por Alcindo, porque esquecer as vítimas seria contribuir para a injustiça. “Quando a vítima é esquecida e o perpetrador aparece quase que celebrado em todo o lado”, escrevi então, “estamos perante o sinal claro de um falhanço coletivo”. Contrastava assim esse esquecimento com a absurda visibilidade mediática de que goza agora um dos participantes nesses ataques de 1995 e em outros atos criminais, Mário Machado.

Após a publicação da crónica chamaram-me a atenção para um longo perfil de Alcindo Monteiro publicado no site Observador em 2014, e no qual Mário Machado conseguira fazer inserir um direito de resposta onde se lia assim: “Eu fui condenado por 'ofensas corporais simples' — repare, 'simples' — por me ter defendido do ataque de um grupo de cerca de 15 indivíduos de raça negra […] eu não estive envolvido no homicídio de Alcindo Monteiro”.

Só havia uma forma de esclarecer a discrepância entre o que se pode encontrar na imprensa de referência sobre o caso e o que estava naquele direito de resposta: indo ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre o caso, a que só ontem tive acesso.

A leitura é angustiante, se bem que necessária. Aviso já que vou citar diretamente da fonte. A partir dela podemos tirar duas conclusões.

A primeira conclusão é que é verdade que Mário Machado não foi condenado pela morte de Alcindo Monteiro: o grupo de cabeças-rapadas que perpetrou os ataques racistas dividiu-se em dois para depois se reencontrar num ponto pré-combinado, e o grupo que atacou Alcindo Monteiro não contava com Mário Machado. Quanto a “não estar envolvido”, expressão ambígua, é o próprio Supremo que distingue entre o plano da responsabilidade moral e o plano da condenação criminal ao concluir sobre todos os criminosos que “cada co-autor é responsável pela totalidade do evento, [o que] não obsta a que a culpa de cada um seja apreciada individualmente, nos termos do art. 29º do C[ódigo] P[enal]”.

A segunda conclusão é que é mentira que a participação de Mário Machado se tenha dado nas circunstâncias que ele agora alega. Mário Machado foi sim condenado por “oito crimes de ofensas corporais com dolo de perigo”. “Dolo directo e intenso”, como escreve o tribunal numa passagem em que refuta explicitamente que os ataques se tenham tratado de uma “rixa”: “não houve contenda, não houve rixa, mas apenas agressores de um lado e agredidos do outro”. Nos “factos provados” listados pelo Supremo há pelos menos três situações diferentes de agressões a cinco pessoas, logo no início dos acontecimentos, em que Mário Machado foi dos primeiros a tomar iniciativa de agredir as vítimas com um “pau, semelhante a um taco de baseball”. É assim que se iniciam as agressões a Alberto Adriano, a quem “desfere com o 'taco de baseball' uma pancada na cabeça”. Alberto Adriano foi depois espancado pelos criminosos enquanto “iam gritando 'este é preto, mata-o'” e no fim foi abandonado inconsciente no meio da rua. O mesmo sucedeu a João Soares, agredido noutro lugar da mesma forma, sob a mesma iniciativa e pelo mesmo grupo em frente à sua namorada, branca, sob os gritos de (sigo citando o acórdão) “'mata o gajo, negro da merda'” até ser deixado “prostrado no solo, sem se mover”. Só a leitura das lesões provocadas a João Soares leva quatro páginas e 27 itens diferentes. O acórdão nota, falando sobre Mário Machado e estes acontecimentos em que teve participação direta, que “o arguido […] denota completa ausência de arrependimento”.

Há bastante mais, mas escuso-me a continuar. O Supremo deu por provado que “todos os arguidos intervenientes em cada uma das agressões a ofendidos acima descritas actuaram em comunhão de esforços, querendo atingir a integridade física e a vida dos ofendidos, por serem indivíduos de raça negra, o que conseguiram”. Escuso-me também a entrar nos outros vários crimes subsequentes de Mário Machado, que incluem (segundo o PÚBLICO) “discriminação racial, coacção agravada, posse ilegal de arma e ofensa à integridade física qualificada”. Parece-me claro que além da estratégia de mediatização há também uma estratégia de branqueamento que tira partido do facto de a morte de Alcindo Monteiro ser hoje praticamente o único elemento a ser lembrado daquela terrível noite para se eximir à responsabilidade moral pelo que então se passou. O argumento de fundo da minha crónica mantém-se, portanto, e é até reforçado: uma comunicação social que se deixe enganar por esta estratégia de mediatização e uma sociedade que não esteja sempre vigilante contra tais branqueamentos arriscam-se a ser cúmplices da criação de condições para que acontecimentos destes se repitam.

Se volto ao assunto é por sentido do dever e por três razões principais. A primeira, um respeito escrupuloso pelos factos e pelos leitores: sempre que escrevo uma crónica faço-o acedendo à informação mais fidedigna possível (através da imprensa, como na sexta, ou se necessário das fontes primárias, como hoje) e sempre que tenho razões para acreditar que devo acrescentar, precisar ou corrigir uma crónica anterior faço-o. A segunda, porque dada a perigosidade da extrema-direita não devemos dar aos seus elementos pretextos, ainda que involuntários, para se vitimizarem, o que poderia acontecer pela referência principal a Alcindo Monteiro, que pode ser usada para exculpar a participação no ataque como um todo. E a terceira, porque me permite lembrar as outras vítimas, entre as quais pelo menos as seguintes - Manuel Domingos Silva, Contreiras Ferreira, Alberto Adriano, Fausto Soares, João Soares, Matias de Almeida - poderiam bem ter tido o mesmo destino de Alcindo Monteiro naquela terrível noite.

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