Divisões inviabilizam acordo para a reforma do sistema de asilo da UE

A crise exposta pelo drama a bordo do navio Aquarius não tem fim à vista. Eurodeputados exigem acção, mas não há consenso nas capitais para resolver a crise dos refugiados na Europa.

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A bordo do Aquarius seguem agora 106 resgatados, enquanto os restantes viajam para Espanha noutros dois navios KENNY KARPOV/Reuters
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No porto de Valência já se fazem os preparativos para receber 629 pessoas Juan Carlos Cardenas/EPA

Os discursos acalorados e desencontrados de responsáveis políticos europeus, em Estrasburgo, Bruxelas, Berlim ou Roma, mostram que o último episódio da crise de refugiados não ficará resolvido quando o navio Aquarius e as outras duas embarcações que levam a bordo 629 imigrantes e candidatos a asilo resgatados no Mediterrâneo atracarem no porto de Valência — nem, provavelmente, quando os 28 líderes se reunirem, no fim deste mês, no Conselho Europeu onde estava prevista a aprovação de um novo modelo para o sistema europeu de asilo, conhecido como regulamento de Dublin.

O caso do Aquarius apenas veio expôr a fractura que se abriu no continente depois do grande êxodo de 2015, e tornar mais polarizada a discussão entre os dois grandes blocos a favor e contra o acolhimento de refugiados. Prestes a assumir a presidência da UE, o chanceler austríaco, Sebastian Kurz, já fez saber que esse debate estará no topo da sua agenda política.

Kurz, que dirige um Governo de coligação com a extrema-direita, ganhou esta quarta-feira um poderoso aliado: o ministro do Interior da Alemanha, Horst Seehofer, que surpreendeu ao dizer-se preparado para formar um novo eixo de cooperação Roma-Viena-Berlim em matérias de segurança e migrações. Seria um alinhamento “daqueles que estão disponíveis para arranjar soluções para o problema da imigração ilegal”, explicou o austríaco, que foi falar com o ministro alemão a Berlim.

A postura de Seehofer, um político do partido conservador bávaro CSU, deixa Angela Merkel numa posição delicada, tanto do ponto de vista da gestão política interna, como no seu papel de “autoridade moral” no debate europeu sobre a crise migratória. Recorde-se que quando vários países começaram a fechar fronteiras e a construir muros, a chanceler abriu as portas à entrada de mais de um milhão de refugiados.

Numa sessão para debater as “emergências humanitárias no Mediterrâneo e a solidariedade na União Europeia”, no Parlamento Europeu, a posição assumida pelo novo Governo italiano, que fechou os portos do país ao barco da SOS Méditerranée, mereceu críticas contundentes de todas as bancadas menos a que integra os partidos nacionalistas e de extrema-direita.

Mas foi principalmente a inacção dos Estados membros da UE no seu conjunto que esteve na mira dos eurodeputados, que mesmo reconhecendo a pressão que enfrentam os políticos em países onde o discurso anti-migratório se tornou um poderoso activo eleitoral, não deixaram de exigir que respostas e soluções, já muito debatidas e avaliadas, sejam urgentemente desbloqueadas.

“Os Estados membros continuam a discutir e a perder tempo, sem encontrar uma solução”, criticou o presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, lembrando que os legisladores aprovaram uma reforma do sistema de asilo que “poderia ser uma óptima base” para as decisões que têm de ser tomadas no próximo Conselho de 28 e 29 de Junho. “Os trabalhos não podem ser dados por terminados sem uma solução”, frisou.

A vida de seres humanos

A mesma mensagem chegou de Genebra, de onde o alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados, Filippo Grandi, lançou um apelo à acção urgente dos parceiros europeus. “É muito claro para toda a gente que a Europa tem de reformar o seu sistema de asilo de forma colectiva. O sistema tem de prever uma distribuição mais equitativa da responsabilidade, para que quando houver um desembarque se possa cumprir o processo de determinar quem tem o estatuto de refugiado e quem não tem”, defendeu.

“Há muita resistência, mas não há outra maneira”, sublinhou Grandi, que não deixou de exprimir a sua vergonha, enquanto cidadão europeu, por um navio humanitário com centenas de pessoas a bordo ter sido impedido de atracar. “É simplesmente vergonhoso”, lamentou. A resposta de Roma não demorou: em declarações ao Corriere Della Sera, o ministro do Interior, Matteo Salvini, repetiu que a politica migratória do seu país não é desenhada pelas organizações internacionais que manobram embarcações nas águas do Mediterrâneo.

“Não devemos entrar no jogo de atribuir culpas, mas não podemos dar-nos à complacência. Todos têm de assumir responsabilidades e cumprir as suas obrigações. A solução tem de ser estrutural”, considerou o comissário europeu com a pasta das Migrações, Dimitris Avramopoulos. Pelo seu lado, a alta representante da UE para a Política Externa, Federica Mogherini, sublinhou que já deveria ser “evidente para todos que a política europeia sobre as migrações tem de basear-se no princípio da solidariedade, tanto interna entre os Estados membros, como externa — na qual a vida de seres humanos está acima de qualquer outra coisa”, destacou.

O “equilibrismo” que a Comissão tem vindo a fazer também se vislumbrou esta quarta-feira, na reacção dos porta-vozes às perguntas dos jornalistas sobre a polémica entre a Itália e a França (apesar da retórica inflamada dos italianos, um porta-voz do Governo francês esclareceu que não houve nenhum pedido para o cancelamento da cimeira entre o Presidente Emmanuel Macron e o primeiro-ministro, Giuseppe Conte, na sexta-feira), ou a reforma do regulamento de Dublin. “Há um debate em curso, que não é neutro, e por isso não haverá comentários da Comissão”, justificou um dos assessores.

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