Coligação saudita ataca cidade onde “250 mil iemenitas podem perder tudo, até a vida”

O porto de Hudheida, no mar Vermelho, é o principal ponto de entrada de alimentos no Iémen, país que enfrenta a pior crise humanitária do mundo.

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Um jantar de quebra do jejum do Ramadão organizado por ONG para órfãos iemenitas YAHYA ARHAB/EPA
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Quase tudo o que entra actualmente no país chega ao porto de Hudheida YAHYA ARHAB/EPA

A Arábia Saudita e líderes iemenitas que apoiam, com os seus aliados, principalmente os Emirados Árabes Unidos e o Sudão, que têm tropas no terreno, garantem que vão expulsar o movimento huthi da cidade erguida no mar Vermelho e começar assim “a recaptura do Iémen”. A ONU diz que o ataque a Hudheida iniciado esta quarta-feira pode “piorar de forma drástica” as condições de uma população a viver em desespero há três anos.

Em Hudheida e nos seus arredores vivem 600 mil pessoas, incluindo 300 mil crianças. A coordenadora da ajuda da ONU no país, Lisa Grande, avisa: “No pior cenário, com uma operação prolongada, tememos que até 250 mil pessoas possam perder tudo – até as suas vidas.”

“Com este assalto, as crianças vão sofrer mais fome e morte”, sublinha o porta-voz da Save the Children em Sanaa, Anas Shahari, que esteve pela última vez em Hudheida há três meses. “Pude ver crianças com fome, crianças que andam pelas ruas com as costelas a verem-se, saídas; bebés incapazes de chorar por estarem tão malnutridos”, descreveu à Reuters. “Essa era a situação e agora vai piorar”.

O Iémen, que já era o mais pobre dos países árabes (em 2014, metade da população vivia com menos de dois dólares por dia e sem acesso a saneamento básico, com 41% a viver em insegurança alimentar), atravessa uma crescente tragédia desde que Riad decidiu formar uma coligação e enfrentar os huthis, uma tribo do Sul marginalizada pelo Governo que os sauditas ajudaram a formar depois dos protestos de 2011, que derrubaram Ali Abdullah Saleh, um ditador há 33 anos no poder. Os huthis ripostaram e assumiram o controlo de grande parte do país; os sauditas dizem que são aliados do Irão e que não os podia deixar vencer.

O resultado são 8,4 milhões de pessoas à beira de morrer à fome (números da Organização Mundial da Saúde) e dependentes do porto de Hudheida para a entrada de alimentos, medicamentos ou combustível (80% de tudo o que entra actualmente no país chega por essa via).

Desde que os sauditas se envolveram no que era até então uma guerra civil, em 2015, já morreram pelo menos 10 mil pessoas (dois terços destes mortos eram civis) nos combates, a maioria atingidos por ataques aéreos da coligação. A ONU não inclui aqui os mortos por doença ou malnutrição – só o surto de cólera matou 2290 pessoas.

"Pensávamos que não podia piorar.."

É a primeira vez que a coligação formada por Riad tenta tomar Hudheida (ou uma cidade tão fortificada e bem defendida como esta). A operação Vitória Dourada começou de manhã, com cerca de 30 ataques aéreos contabilizados pela CARE International, uma das poucas organizações que ainda operam na cidade. “Alguns civis estão encurralados, outros tiveram de fugir das suas casas. Pensávamos que não podia piorar, infelizmente estávamos enganados”, disse à BBC a directora da ONG para o país, Jolien Veldwijk.

A televisão saudita Al-Arabiya cita testemunhas que descrevem bombardeamentos “concentrados e intensos” nas imediações do porto. Já ali se encontravam cinco navios a descarregar bens, mas foram proibidas quaisquer novas chegadas por causa dos ataques.

“A libertação do porto é o começo da queda da milícia Huthi e vai garantir a segurança dos navios no estreito de Bab al-Mandab, arrancando-o das mãos do Irão, que têm enchido o Iémen de armas que derramam o precioso sangue dos iemenitas”, afirma em comunicado o governo apoiado pelos países árabes, no exílio.

“Os huthis não podem manter Hudheida refém para financiar a sua guerra e desviar a ajuda humanitária”, afirmou, por seu turno, o ministro dos Negócios Estrangeiros dos Emirados, Anwar Garhgash, recordando que a coligação árabe dera três dias aos huthis para abandonar o porto.

EUA e Reino Unido

Diplomatas de vários países, dos EUA ao Reino Unido, tentaram convencer a Arábia Saudita e os Emirados a adiarem o ataque. Mas ambos terão acabado por dar luz verde, tal como continuaram a vender armas no valor de milhões e milhões de euros a Riad sabendo que estão a ser usadas para matar iemenitas. A Suécia deve pedir ainda esta quarta-feira uma reunião aberta do Conselho de Segurança da ONU para debater a situação.

A ONU tem tentado forçar um acordo entre as partes, mas esta operação “vai provavelmente exacerbar uma situação humanitária que já é catastrófica", diz a porta-voz da Cruz Vermelha, Marie-Claire Feghali.

Martin Griffiths, o enviado especial das Nações Unidas para o Iémen, avisou que este ataque vai ser um revés para os seus esforços. “Estou muito preocupado com os desenvolvimentos militares em Hudheida. Uma maior escalada militar terá sérias consequências na situação humanitária desesperada que o país vive”, diz Griffiths num comunicado. “Não há maneira de sublinhar o suficiente o facto de não existir uma solução militar para o conflito”.

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