Pas de deux

A questão coreana define o mandato do seu sucessor e, provavelmente, garante a sua reeleição.

Dois dias depois da eleição de Donald Trump, Barack Obama recebeu o seu sucessor na Casa Branca e disse-lhe que a questão coreana ia determinar o seu mandato.

O presidente Obama sabia do que estava a falar: nos últimos 25 anos, desde o primeiro acordo assinado por Jimmy Carter, em representação de Bill Clinton, e por Kim il-Sung, todos os presidentes americanos tentaram resolver a questão coreana e falharam todos. Kim il-Sung e Kim Jong-il comprometeram-se ambos a  “desnuclearizar a península coreana” e ambos violaram esse compromisso. No intervalo, a Coreia do Norte tornou-se uma potência nuclear e a China, o único aliado do regime comunista coreano, passou a ser a segunda maior potência internacional.

O presidente Trump tomou à letra o conselho do seu antecessor. Nos meses seguintes, enquanto Kim Jong-un repetia os ensaios nucleares e de mísseis de longo alcance, apesar das sanções impostas pelo Conselho de Segurança, Trump alternou entre a ameaça nuclear e a disponibilidade reiterada para se encontrar com o seu homólogo norte-coreano, o que nenhum dos seus antecessores tinha jamais admitido. Paralelamente, pôde obter o apoio da China ao regime de sanções, decisivo para isolar a Coreia do Norte.

A primeira cimeira entre o Presidente dos Estados Unidos e o Presidente do conselho de Estado da Coreia do Norte é o resultado dessa prova de força. Kim pôde sentar-se à mesa com Trump, porque completou o programa nuclear norte-coreano; Trump pôde estar com Kim, porque demonstrou a sua capacidade para punir a Coreia do Norte.

A cimeira de Singapura — “histórica” para Kim, “importante” para Trump —  é, em si mesma, um passo crucial, desde logo porque muitos, dentro e fora dos Estados Unidos e da Coreia do Norte, não queriam que a reunião tivesse lugar.

Desde logo, a China, pela primeira vez, sentiu-se marginalizada e Xi Jinping fez Kim ir duas vezes ao seu encontro, em Pequim e Dalian, antes da cimeira: a Coreia do Norte não quer ser um satélite do seu grande aliado comunista, nem o pode dispensar para garantir a sua retaguarda perante os Estados Unidos. Por outro lado, o Japão teme que os acordos entre Washington e Pyongyang se limitem a travar o desenvolvimento das capacidades militares norte-coreanas, sem inverter o seu estatuto como potência nuclear. Por último, a Coreia do Sul não sabe o que fazer se perder a garantia nuclear norte-americana, nem está preparada para suportar os custos económicos da “normalização” da Coreia do Norte: o Presidente sul-coreano queria mesmo estar em Singapura e tentou forçar uma cimeira tripartida.

Os resultados da cimeira não são conhecidos, para além de um comunicado lacónico, no qual Trump e Kim se comprometem eles próprios, o primeiro a dar “garantias de segurança” à Coreia do Norte, o segundo a empenhar-se na “desnuclearização completa da península coreana” — uma fórmula norte-coreana, muito aquém da proposta norte-americana, que quer uma “desnuclearização completa, verificável e irreversível” da Coreia do Norte. O mais importante são os passos seguintes, que podem confirmar os termos gerais da declaração conjunta de Singapura.

Esses passos devem ser dados tanto no domínio diplomático, como nas medidas que podem traduzir em actos a “desnuclearização completa da península coreana”. Os Estados Unidos e a Coreia do Norte têm de preparar, em conjunto com a China e a Coreia do Sul, os instrumentos indispensáveis para pôr fim à guerra da Coreia: Trump não deve ceder à tentação de marginalizar a China, signatária do armistício de Panmunjon, nesse processo. No mesmo sentido, os Estados Unidos e a China precisam de reunir a Conferência dos Seis em Pequim, para a Rússia, o Japão e as duas Coreias se empenharem conjuntamente no processo de desnuclearização e de integração regional e internacional da Coreia do Norte.

O processo de desnuclearização só pode ser longo e complexo. No limite, é possível assegurar que a Coreia do Norte põe fim aos ensaios nucleares e à produção de novas armas e de novos mísseis; é mais difícil fazer com a Coreia do Norte volte a ser um Estado não nuclear. Mas a sua integração internacional — política, diplomática, económica — pode reduzir a insegurança do regime comunista, criar condições para a estabilização regional e garantir a sobrevivência da dinastia comunista.

Se assim for, fica confirmada a profecia de Obama, com um grão de sal: a questão coreana define o mandato do seu sucessor e, provavelmente, garante a sua reeleição.

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