FIFA acusada de negligenciar direitos humanos

Associações LGBT acusam o organismo que tutela o futebol mundial de negligenciar direitos humanos

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Uma rara manifestação da comunidade LGBT, no ano de 2014, em São Petersburgo Alexander Demianchuk/Reuters

O Mundial 2018 arranca na quinta-feira num país onde a homossexualidade deixou de ser crime no final do século passado, mas demonstrações homoafectivas em público são desaconselhadas aos adeptos na Rússia.

O alerta é transversal a todas as associações activistas pelos direitos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgénero): a Rússia ainda não é um país seguro para a comunidade e demonstrações homoafectivas devem ser evitadas pelos adeptos que se deslocarem ao país organizador do Mundial 2018. Marta Ramos, directora executiva da ILGA Portugal, teme a “organização de milícias” durante a competição, garante que na Rússia os homossexuais vivem “escondidos e com medo”, e acusa a FIFA de negligenciar esta situação.

Svetlana Zakharova, responsável pela comunicação da Rede LGBT da Rússia, diz que a FIFA deu “um sinal que não tem qualquer problema” com “violações de direitos humanos” ao permitir que o Egipto fique sediado na Tchechénia.

O tema não é novo, mas ganha força redobrada sempre que a Rússia é escolhida para sediar um grande evento internacional. A perseguição aos homossexuais na antiga União Soviética (URSS) teve no regime de Estaline um dos seus pontos críticos, mas a queda do Muro de Berlim e o consequente fim do bloco das repúblicas soviéticas resultou num abrandamento da repressão, que levaria a que, ainda antes do final do século XX, a homossexualidade deixasse de ser crime na Rússia. O problema, porém, nunca foi definitivamente ultrapassado, e ganhou novo mediatismo em Junho de 2013. Por proposta do partido Rússia Unida de Vladimir Putin, a Duma aprovou uma legislação que prevê multas e penas de prisão para quem distribuir informação que promova a “propaganda de relações sexuais não tradicionais” a menores.

Um relatório da Human Rights Watch refere que a lei contribuiu para uma crescente perseguição às minorias sexuais e Svetlana Zakharova acusa a justiça russa de aplicar a legislação à medida dos seus interesses. “Esta lei não define o que é propaganda, então os tribunais usam-na da maneira que querem: deixam as pessoas com medo, proíbem as acções públicas, punem os activistas LGBT. Houve até casos em que crianças foram retiradas das famílias devido a esta lei”, afirma ao PÚBLICO a responsável da Rede LGBT da Rússia.

Embora acredite que “as autoridades farão o melhor para proteger a comunidade LGBT”, a activista alerta “todos os que viajarem para a Rússia para estarem conscientes do ambiente que vão encontrar”. “Os crimes de ódio têm subido constantemente, as autoridades promovem o ódio pelos meios de comunicação, que na sua maioria são controlados pelo Estado. A discriminação é esmagadora. A maioria das pessoas LGBT não expõem a sua orientação sexual ou identidade de género porque têm medo de serem rejeitadas pelos seus amigos ou familiares, ou de serem demitidas.”

O Kremlin não é o único alvo das críticas de Zakharova. Há cerca de um ano, uma reportagem do jornal russo Novaya Gazeta denunciou uma campanha homofóbia das autoridades da Tchetchénia, que teria resultado na detenção de uma centena de homens suspeitos de serem homossexuais. Na altura, Alvi Karimov, porta-voz do líder tchetcheno Ramzan Kadyrov, um aliado de Putin, rejeitou as acusações, porque “não se pode deter e perseguir pessoas que não existem”. “Se houvesse esse tipo de pessoas na Tchetchénia, os órgãos judiciais não tinham que fazer nada. As suas próprias famílias as enviariam para algum lugar de onde não pudessem regressar”, acrescentaram as autoridades da república do Cáucaso. Perante este caso, a Rede LGBT da Rússia confessa-se “surpreendia” pela decisão da FIFA de “colocar a base do Egipto em Grozny”. “Ao colocar um campo de treinos de uma selecção na Tchetchénia, a FIFA está a dar um sinal que não tem qualquer problema perante uma severa violação dos direitos humanos”, conclui Svetlana Zakharova.

O organismo presidido por Gianni Infantino está também na mira de Marta Ramos. A directora executiva da ILGA Portugal sublinha que o desporto “continua a ser bastante homofóbico”, o que devia ser “uma preocupação para a FIFA e para os seus parceiros”. “Estamos a falar de direitos humanos e de organizar eventos em países que não os respeitam. A FIFA deveria marcar uma posição. As questões dos direitos humanos não devem ser negligenciadas e ultrapassadas por meras questões económicas”, defende.

A directora da mais antiga associação portuguesa de defesa dos direitos LGBT lembra que “há uns anos houve uma campanha da UEFA contra o racismo” e diz ainda que a associação europeia participou recentemente “num workshop sobre a discriminação no desporto organizado em Portugal. Da FIFA não temos qualquer tipo de feedback para estas questões”.

Lamentando a postura do organismo que gere o futebol mundial, Marta Ramos é da opinião que o Mundial 2018 seria uma “oportunidade de ouro para a FIFA marcar posição”. “Já que fazem as provas nestes países, não ignorem o que lá se passa. Façam campanhas, falem sobre o assunto, criem condições para que o evento tenha um impacto positivo”, diz ao PÚBLICO, revelando ainda que a ILGA Portugal recebeu pedidos de apoio de pessoas que, por viverem “escondidos e com medo, e tendo a vida em risco, querem fugir da Rússia”.

Perante este cenário, Marta Ramos deixa um conselho aos membros da comunidade LGBT que se deslocarem à Rússia durante o Mundial 2018: “A realidade é de violência. Pode haver organização de milícias, porque é assim que funciona na Rússia. É possível virar na esquina errada e a coisa correr mal.”

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