Lulu: o sexo não perdoa e o dinheiro ainda menos

Cem anos após a morte do dramaturgo alemão Frank Wedekind, Lulu tem esta quarta-feira a sua estreia nacional no palco do Teatro Carlos Alberto. Uma personagem tão potente que o encenador Nuno M. Cardoso precisou de duas actrizes e uma bailarina para a tentar conter.

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Lulu é “a primeira peça moderna”, defendeu o dramaturgo britânico Edward Bond, cuja visão do texto de Frank Wedekind (1864-1918) como uma lúcida profecia do capitalismo enquanto sistema de desumanização influenciou a encenação de Nuno M. Cardoso, que se estreia esta quarta-feira, às 19h, no Teatro Carlos Alberto, no Porto, numa produção do Teatro Nacional de S. João. É a primeira vez que se leva ao palco em Portugal este texto escrito há mais de cem anos e que inspirou A Boceta de Pandora (1929), de G. W. Pabst, com a extraordinária Louise Brooks, e a ópera incompleta de Alban Berg, Lulu, postumamente estreada em 1937.

Lulu teve várias versões: inicialmente escrita como uma só peça, subintitulada Uma Tragédia Monstruosa, Wedekind acabou por a dividir em duas: O Espírito da Terra (1895) e A Caixa de Pandora (1905), num total de sete actos, cuja representação integral exigiria cerca de oito horas em palco. A dramaturgia concebida por João Luís Pereira e pelo próprio Nuno M. Cardoso, a partir de uma tradução de Aires Graça, reduziu consideravelmente a extensão do texto e prescindiu quase totalmente de dois actos (um de cada peça). “Esta dramaturgia”, assume João Luís Pereira, “quis caminhar com muita impaciência para o final de cada um dos seus cinco actos”, momentos em que, descreve, “encontramos Lulu no seu melhor e no seu pior, a Bela e o Monstro de si mesma, psicopata a desafiar em permanência algumas fronteiras do humano, amorosa e criminosa, incompassiva e letal”.

Camaleão sexual que assume todos os papéis em que o desejo masculino a concebe, mas paradoxalmente livre na sua amoralidade. Presa e caçadora. Amante que responde por Lulu, ou Nelli, ou Mignon, ou mesmo Eva, mas não tem nome que seja seu (ou que ela seja). Potência vital, que destrói os que não têm a força necessária para suportar a sua intensidade, mas ela própria refém de um instinto de morte que a levará, no final, a entregar-se nas mãos assassinas de Jack, o Estripador.

Esta ambiguidade da figura de Lulu tem originado leituras muito diversas, quando não contraditórias da peça. Exemplo de uma visão misógina que reduz a mulher a uma espécie de tabula rasa onde os homens projectam os seus próprios e diversos estereótipos do feminino ou corajosa crítica da hipócrita boa consciência patriarcal e burguesa? Se esta última hipótese parece mais sustentável, também seria bastante absurdo querer ver um pioneiro do feminismo ou um longínquo precursor do movimento Me Too em Frank Wedekind, que foi, aliás, um mulherengo impenitente, pelo menos até se ter tornado o marido deveras ciumento e possessivo de uma actriz 22 anos mais nova do que ele.

“A ideia não foi fazer o percurso de uma personagem, contar a sua história, em sentido narrativo, mas mostrar Lulu como o reflexo de muitas mulheres”, explica Nuno M. Cardoso, que optou por entregar o papel (os papéis) de Lulu a duas actrizes – Catarina Gomes e Vera Kolodzig – e a uma bailarina, Sara Garcia.

Numa conversa com a jornalista Mariana Duarte integrada no próprio processo de produção da peça, o encenador afirma: “Lulu não é um ser único nem especial. Não é uma heroína nem uma femme fatale. Nem um ser trágico. É o que está à nossa volta todos os dias.” É por isso que “este texto escrito há mais de cem anos tem uma terrível actualidade”, dirá depois ao PÚBLICO.  “O que é tenebroso é que isto não é o passado, isto continua a acontecer”, acrescenta, assumindo que a sua encenação quer também ser “um gesto que afirme a necessidade de as coisas mudarem”.

Para Edward Bond, cuja visão política da peça Nuno M. Cardoso assumidamente partilha, Wedekind é de tal modo presciente na sua intuição de que “a combinação de sexo e capitalismo é destrutiva e está na origem da era da violência” que ele próprio dificilmente poderia perceber tudo o que a sua peça dá a ver. Encarando o capitalismo como um sistema desumanizador e destruidor de culturas, e que não é ele próprio uma cultura, o dramaturgo lê Lulu a esta luz, sugerindo que a protagonista passa pelas “culturas tradicionais” dos seus primeiros amantes rumo a Jack, o Estripador, “o Super-Homem Negativo, o grande engenheiro e empresário, o coração mirrado do capitalismo”.

“Um grito de liberdade”

Lulu “é um grito de liberdade”, acredita Nuno M. Cardoso. Mas como mostrá-la na sua objectificação sexual sem que a exposição do que se pretende denunciar corra o risco de se tornar mais cúmplice do que crítica? Explica-o na já referida conversa com Mariana Duarte: “Como se faz? Acho que é sublinhando o corpo como objecto, como produto, como instrumento, para depois retirar tudo isso. O corpo vai desaparecendo, em Londres estamos quase na penumbra. Passa tudo pelo discurso.”

Londres é o capítulo final, a descida aos infernos de Lulu, que vive três vidas muito diferentes em três cidades distintas: Berlim, Paris e Londres. Algo que esta encenação sublinha, desde logo na cenografia (de Nuno Carinhas), mas também ao nível da representação, sublinhando que esses três momentos do périplo europeu de Lulu correspondem a genuínas etapas existenciais.

“Há três blocos muito distintos também no plano estético: Berlim é uma coisa muito a preto e branco, mais fechada, Paris é a abertura, com muito dourado, muito brilho, muita luz, e Londres é praticamente a escuridão completa, e quase já não há palavras, como se Lulu atravessasse um pântano até chegar a Jack, o Estripador”, descreve Nuno M. Cardoso. Cada uma das intérpretes representa a protagonista num destes sucessivos cenários: Catarina Gomes em Berlim, Vera Kolodzig em Paris e, finalmente, a bailarina Sara Garcia em Londres, embora as fronteiras não sejam rígidas e o encenador por vezes as conjugue num mesmo local e instante.

Nuno M. Cardoso garante que começou a pensar em encenar esta peça há 20 anos. “Antes de ler o texto, a Lulu que eu conhecia era a do filme do Pabst, interpretada pela mítica Louise Brooks”, diz, mas foi no início dos anos 90 que se confrontou com a obra de Frank Wedekind, ao trabalhar como actor numa encenação de Rogério de Carvalho de O Despertar da Primavera, uma peça que o dramaturgo publicou em 1891 e que provocou grande escândalo na época, com as suas cenas de homoerotismo, masturbação em grupo, sado-masoquismo e suicídio.

O interesse pelo dramaturgo levou-o então a embrenhar-se nas múltiplas versões de Lulu. “Vem desde aí uma vontade enorme de fazer este texto”,  afirma, desejo que começou a concretizar há dois anos, quando estava já a colaborar com Nuno Carinhas na gigantesca tarefa de encenar Os Últimos Dias da Humanidade, de Karl Kraus. E o escritor austríaco foi precisamente o produtor da célebre estreia vienense de A Caixa de Pandora, em 1905, com o próprio Wedekind a fazer o papel do Apresentador, que introduz as restantes personagens como um domador a mostrar os animais de um circo ambulante, mas também de Jack, o Estripador, cliente (e destino) final de Lulu, que a assassina para lhe roubar e vender o útero.

Não por acaso, estas duas personagens, início e fim desta história de sexo, dinheiro e morte, são agora interpretadas pelo próprio Nuno M. Cardoso. “Faço de Apresentador, que se assume como o encenador, e faço de Jack, que é o destruidor. Coloco-me com toda a consciência nesse papel de encenador homem, que é também o destruidor”, explica nos materiais de apresentação da peça. 

 

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