Censura, beijos lésbicos e desenhos animados

É obviamente inadmissível, vergonhoso e discriminatório um canal de televisão censurar uma série de desenhos animados para pré-adolescentes só porque em dado momento aparecem duas raparigas a beijarem-se na boca.

No final de 2016, o canal Panda Biggs censurou uma série de animação japonesa chamada Sailor Moon Crystal 3, cortando um beijo entre duas raparigas, mais umas cenas onde se falava de identidade de género. O corte deu origem a quatro queixas junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), com o argumento de que se tratou de “um acto discriminatório com base na orientação sexual”. A ERC não deu razão às queixas, ilibando o canal Panda Biggs. Na sua página de Facebook, Paulo Côrte-Real, ex-presidente da ILGA, criticou a deliberação da ERC e disse esperar “ansiosamente (mas sentado) pela defesa ardente da liberdade de expressão no próximo Governo Sombra”.

Como o programa Governo Sombra é só na sexta-feira, e eu não quero que tanta ansiedade possa prejudicar a saúde de Paulo Côrte-Real, vou já despachar o assunto – até porque a posição daqueles que se têm distinguido “pela defesa ardente da liberdade de expressão” (como eu) contra as investidas de grupúsculos como as FeFa (Feministas Fanatizadas) ou os PPL (Polícias Progressistas da Linguagem, como Côrte-Real) merece ser devidamente sustentada e esclarecida.

Uma nota para a questão estritamente legal, que para o caso é a menos interessante. A ERC argumentou que a Lei da Televisão diz apenas que “os serviços de programas televisivos não podem incitar ao ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela deficiência”. Sendo difícil advogar que a censura de cenas é um incitamento ao ódio ou um apelo directo à discriminação, é possível que do ponto de vista jurídico o Panda Biggs se safe dessa forma. Mas naquilo que é a questão de fundo, tal gesto não me merece quaisquer dúvidas: é obviamente inadmissível, vergonhoso e discriminatório um canal de televisão censurar uma série de desenhos animados para pré-adolescentes (é por isso que o canal se chama Biggs) só porque em dado momento aparecem duas raparigas a beijarem-se na boca.

Infelizmente, certas passagens da deliberação da ERC têm um cheiro insuportável a naftalina. A dada altura desculpa-se o “silenciamento das temáticas homossexuais e transgénero de um programa infantil por alegadamente terem sido consideradas desadequadas ao público jovem”, com o argumento de que “tal preocupação até é legítima, dado que se está perante um assunto fracturante na sociedade portuguesa”. Vamos cá ver. O aborto é um assunto fracturante. A eutanásia é um assunto fracturante. Posso até admitir que a adopção por casais homossexuais seja um assunto fracturante. Mas a homossexualidade? Caros senhores e senhoras da ERC: a homossexualidade já não é um assunto fracturante há pelo menos 20 anos, graças a Deus e a activistas como Paulo Côrte-Real, que nesta matéria tem os seus méritos.

Alguém achar que a homossexualidade ainda é fracturante em 2018 é puro preconceito, sem nenhum argumento lógico atendível (até a Igreja já tem vergonha de defender a tese contra-natura em voz alta), e graças a uma falta de visibilidade que o Panda Biggs apenas reforçou com a sua opção. Portanto, caro Paulo Côrte-Real, não percebo qual seja a dúvida nesta matéria: como o próprio nome indica, os defensores ardentes da liberdade de expressão não gostam que censurem coisas. Não gostam que censurem desenhos animados. Não gostam que censurem cadernos cor-de-rosa e azuis. E não gostam que censurem o uso da palavra “princesa”. Mais simples do que isto não há.

Sugerir correcção
Ler 50 comentários