Portugal desperdiça fundo europeu que apoia oferta de fruta a crianças

Gabinete de planeamento do Ministério da Agricultura garante que carga burocrática diminuiu e que modelo foi alterado neste ano lectivo. Número de municípios que participam baixou de 154 para 114, entre 2009/2010 e 2016/2017.

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Programa visa promover hábitos alimentares saudáveis Nuno Ferreira Santos

Portugal aproveita apenas um quarto das verbas disponibilizadas pela União Europeia (UE) para um programa que visa incentivar as crianças a comer fruta e hortícolas ao lanche nas escolas públicas. Desde há quase uma década, o país tem desperdiçado milhões de euros e isso acontece em parte devido à burocracia associada à operacionalização deste programa que é gerido e financiado por dois departamentos do Ministério da Agricultura e envolve ainda os ministérios da Educação e da Saúde.

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Portugal aproveita apenas um quarto das verbas disponibilizadas pela União Europeia (UE) para um programa que visa incentivar as crianças a comer fruta e hortícolas ao lanche nas escolas públicas. Desde há quase uma década, o país tem desperdiçado milhões de euros e isso acontece em parte devido à burocracia associada à operacionalização deste programa que é gerido e financiado por dois departamentos do Ministério da Agricultura e envolve ainda os ministérios da Educação e da Saúde.

Assinalado a vermelho no último relatório (ano lectivo 2016/2017) em que a Comissão Europeia monitoriza o Regime da Fruta Escolar (RFE), Portugal figura em antepenúltimo lugar na taxa de execução do programa, com um aproveitamento de apenas 25,2% da verba disponível, que ronda os 3 milhões de euros por ano.

Não é, porém, um problema comum a outros países do Sul da Europa: Espanha, por exemplo, utilizou 88,7% do dinheiro e Itália, 87,7%. Alguns dos 25 países participantes gastaram mesmo a totalidade da verba. Em Portugal, entretanto, o número de autarquias que participam no programa passou de 154, no primeiro ano (2009/2010), para 114, nesta última avaliação.

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O  objectivo do RFE - que é financiado em 85% pela União Europeia (UE), ficando o restante valor a cargo do país - é pôr as crianças do primeiro ciclo do ensino básico (seis a dez anos) a comer fruta e hortícolas também ao lanche, para promover bons hábitos alimentares em idades precoces e contrariar, no longo prazo, o problema da obesidade infantil. As candidaturas são feitas pelos municípios e são as escolas que distribuem duas peças por semana, desde maçãs, bananas, a cereja e tangerinas, e ainda tomate ou cenouras às rodelas.

A adesão ao programa não é obrigatória, mas Portugal começou a participar logo no início, em 2009, definindo uma estratégia nacional - elaborada pelos ministérios da Agricultura, Saúde e Educação, sob a coordenação do Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP), do Ministério da Agricultura. Os pagamentos ficam a cargo do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP), outro departamento deste ministério.

O PÚBLICO tentou perceber, junto dos três ministérios, como se explica que Portugal desperdice grande parte das verbas da UE. A resposta veio assinada pelo GPP e pelo IFAP do Ministério da Agricultura, que, apesar de reconhecerem o problema da burocracia, o desvalorizam e asseguram que estará ultrapassado. No actual ano lectivo, enfatizam, o modelo do RFE mudou, porque este foi associado ao regime de distribuição do leite escolar, um programa com mais anos e que tem estado a cargo das escolas. Foi a própria UE que decidiu fundir os dois regimes. 

Dupla penalização

Garantindo que foram entretanto efectuados “ajustamentos” para “agilizar e simplificar os procedimentos” e reduzir a carga burocrática, o GPP e o IFAP alegam ainda que o sucesso da implementação deste regime em determinados Estados-membros “não resulta apenas da forma como é operacionalizado”, mas também de outros factores, como o “grau de interacção entre os diferentes intervenientes no sistema de educação, designadamente os encarregados de educação”. 

O certo é que o problema da fraca execução deste programa europeu em Portugal está diagnosticado há anos. Em 2014, vários especialistas, entre os quais se incluíam responsáveis do próprio GPP, da Direcção-Geral da Saúde e da Direcção-Geral da Educação, alertavam já, num artigo publicado na revista Nutrícias, para o facto de a adesão ao RFE não atingir, sequer, metade dos alunos que poderiam ser abrangidos, “tendo baixado sistematicamente desde o 3º ano de lançamento, com a desistência de vários municípios”.

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Reclamando a simplificação do modelo, os especialistas elencavam, então, alguns dos constrangimentos que justificariam a modesta adesão: além dos decorrentes das obrigações da contratação pública (os municípios têm que fazer concursos públicos), destacavam as questões de ordem orçamental, porque não há adiantamentos da verba para adquirir fruta, cabendo às autarquias esse encargo, e lamentavam a “excessiva burocracia, com um elevado e complexo número de mapas a preencher pelos beneficiários”.  

Passaram dois anos. Em Janeiro de 2016, foi a vez de o Tribunal de Contas (TdC) assinalar numa auditoria que os montantes executados ficaram sempre “muito abaixo do esperado, quer do fixado pela Comissão Europeia, quer do fixado nos despachos conjuntos anuais [dos três ministérios]”.

O TdC frisava ainda que o atraso sistemático na publicação dos despachos conjuntos (para a abertura de candidaturas ao RFE) acabava “por comprometer o pagamento dos apoios em tempo útil”. Os representantes de algumas autarquias ouvidos pelo TdC queixavam-se igualmente da “complexidade das regras e procedimentos” e ainda do “atraso nos pagamentos”.

A fraca execução do programa é duplamente penalizadora. Além de o país não usufruir de uma parte considerável da verba, quando as escolas ficam de fora deixam também de receber o dinheiro previsto para as chamadas medidas de acompanhamento, que servem para incentivar as crianças a comer fruta e hortícolas e que incluem, por exemplo, visitas a quintas e mercados e o fornecimento de materiais didácticos. Estas medidas ficam a cargo do Ministério da Educação e das escolas.

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Bons exemplos

Mas o principal problema para vários especialistas ouvidos pelo PÚBLICO e que pediram para não serem identificados é o de que se está a desperdiçar uma oportunidade de promover bons hábitos alimentares que, a crer na experiência de alguns municípios, tem apresentado resultados positivos.

Por exemplo, em Matosinhos, o RFE corre sobre rodas. A câmara até alargou o programa às crianças do pré-escolar e a experiência foi considerada um exemplo de boas práticas pelo Ministério da Educação. Em Vila Nova de Gaia, este programa tem também beneficiado quase 10 mil crianças por ano. 

Para os municípios mais pequenos, o complexo esquema de adesão é, porém, mais difícil de cumprir. E há também autarquias de grande dimensão que preferem não se candidatar, por considerarem que os benefícios não suplantam a carga de trabalho.

É o exemplo de Lisboa, onde a câmara optou por não aderir, porque o RFE é “extremamente burocrático e com enormes custos operacionais”. A coordenação da Equipa de Missão para as Refeições Escolares explicou, por escrito, que o programa implica que “os municípios vão buscar a fruta em datas pré-determinadas, distribuam e depois devolvam o excedente não consumido”. Os benefícios, conclui, “seriam poucos perante as dificuldades na sua implementação”. Mas garante que dá fruta ao lanche às crianças nas escolas, pagas com o orçamento da autarquia.