Taiwan nunca esteve tão sozinha. Nem tão orgulhosa

Num mês, Taiwan deixou de ser reconhecida por dois dos seus aliados diplomáticos. Apesar da pressão crescente da China, os dirigentes do território reivindicado por Pequim confiam na manutenção do status quo. Ninguém se atreve a falar abertamente em independência. Mas ela está lá.

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Memorial de Chiang Kai-shek em Taipé DAVID CHANG/EPA

É um fim de tarde preguiçoso, de céu nublado sobre o porto de Kaohsiung, na costa sudoeste de Taiwan. Pequenos grupos de turistas passeiam de trás para frente na marginal, parando ocasionalmente para uma fotografia com os barcos que passam ao fundo ou para admirarem as araras que dois homens fazem voar, procurando tentar quem passa a posar para uma fotografia. Carlos, o diplomata do Ministério dos Negócios Estrangeiros que nos acompanha, viveu sete anos no Brasil e tenta explicar por que razão a maioria dos taiwaneses parece não gostar de praia. É que foi pela costa que o Exército de Mao Tsetung tentou invadir a ilha no término da Guerra Civil, quando o Governo nacionalista de Chiang Kai-shek resistia para manter o último reduto do seu poder. A complicada história de Taiwan aparece de várias maneiras no dia-a-dia deste território de 23 milhões de habitantes e a praia não é sequer a mais estranha.

Não há hoje lançamentos de mísseis nem bombardeamentos no Estreito de Taiwan, mas nem por isso a tensão desapareceu. Em Taipé, os dirigentes locais denunciam uma “batalha legal” em curso com o objectivo de criar uma “atmosfera internacional como se Taiwan pertencesse à China”, como descreve Joseph Wu, que era secretário dos Negócios Estrangeiros quando, no início de Maio, participou numa conversa com jornalistas de vários países, incluindo o do PÚBLICO.

No hall de entrada do edifício do Ministério dos Negócios Estrangeiros estão expostas as bandeiras dos países com que Taiwan mantém relações diplomáticas oficiais. Há cerca de um mês contavam-se 19, mas entretanto a bandeira do Burkina-Faso foi retirada. Taiwan tem perdido aliados diplomáticos a um ritmo preocupante. Quando a Presidente Tsai Ing-wen tomou posse, há pouco mais de dois anos, havia 23 países que reconheciam Taiwan. Em Maio, o Burkina-Faso juntou-se à Gâmbia, São Tomé e Príncipe, Panamá e República Dominicana, que fizeram uma jogada cada vez mais comum: depois de cortarem os laços diplomáticos com a ilha, anunciam o início de relações com a China.

A perda do Burkina-Faso, poucas semanas depois da República Dominicana, foi particularmente sentida em Taipé. Wu apresentou a sua demissão e Tsai garantiu que o seu Governo “não irá tolerar” novas perdas diplomáticas. Taiwan acusa a China de comprar aliados, oferecendo largos investimentos nos países que ainda reconhecem a ilha. “Quando chega a certo ponto, esses países começam a perceber que não conseguem enfrentar a pressão chinesa”, explica Wu. Para garantir relações diplomáticas com Pequim, os países têm de reconhecer a existência de “uma só China”, da qual “Taiwan é parte inalienável”. 

No meio da pressão, o Governo taiwanês tenta enviar algumas mensagens de pragmatismo. “Apesar da falta de relações oficiais entre Taiwan e as principais nações do mundo, encontrámos mecanismos práticos para contornar essa situação”, diz Wu. Os funcionários colocados nas representações taiwanesas em todo o mundo – em Lisboa há o Centro Económico e Cultural de Taipei – são diplomatas da secretaria de Negócios Estrangeiros. O carácter pouco definido do estatuto da ilha não se intromete nos negócios que Taiwan faz, incluindo com a China, o seu principal parceiro comercial. O ex-chefe da diplomacia reconhece a “ironia”.

Porém, ao perder reconhecimento oficial, Taiwan perde algo de muito precioso: uma voz nas organizações internacionais onde também não pode entrar. “Independentemente do seu tamanho, estes países têm um voto e os mesmos direitos que todos os outros”, diz Wu, que elogia a “fidelidade” com que os seus aliados têm defendido Taiwan.

A estratégia chinesa de isolamento internacional de Taiwan também se estende às organizações multilaterais. Um dos casos que as autoridades taiwanesas consideram mais graves é a ausência de um convite para participar na Assembleia-Geral da Organização Mundial de Saúde, que decorreu em Genebra no final de Maio. Também aqui, o Governo vê o dedo de Pequim. “Lamentamos que a OMS se tenha tornado num instrumento da China”, diz Wu.

A ausência de participação na OMS pode ter efeitos que vão para além da simples diplomacia. Fora da organização, Taiwan deixa de ter acesso às informações oficiais em tempo real sobre surtos epidémicos ou outros alertas, tendo que aguardar por notícias através de canais oficiosos. O secretário da Saúde, Chen Shih-chung, lembra uma suspeita de um caso de tuberculose que a OMS conhecia em Outubro, mas do qual as autoridades taiwaneses apenas souberam cinco meses mais tarde. “Participar na OMS é uma questão de direitos humanos”, afirma o responsável. Joseph Wu diz que o mesmo acontece com a Interpol, onde a participação de Taiwan também está vedada, com potencial impacto negativo no combate à criminalidade.

Um outro campo de batalha abriu-se nos ares, com a exigência chinesa dirigida a algumas das principais companhias aéreas do mundo para alterarem a designação de Taiwan para “Taiwan, China” – e que foi cumprida por mais de duas dezenas, incluindo a Lufthansa e a British Airways. 

Medidas como esta ferem um orgulho que parece estar a crescer entre os taiwaneses por aquilo que foi construído nas últimas sete décadas. Taiwan apresenta-se como uma sociedade democrática, que preza as liberdades individuais – a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma das discussões mais apaixonadas na ilha – ao mesmo tempo que se tornou num gigante económico, sobretudo na área da electrónica, e muito próspera (o PIB per capita está ao nível da Alemanha). A submissão a um sistema político totalmente diferente está fora de questão. “O Governo da República Popular da China nunca, por um dia, pôs os seus pés em Taiwan”, afirma Wu.

O valor da ambiguidade

O estatuto da ilha é um dos desafios diplomáticos mais bizarros da História do século XX. A República Popular da China, que controla a China continental, reivindica Taiwan como uma província sua, ocupada “temporariamente”; por sua vez, Taiwan assume-se como o Estado sucessor da República da China, que é a sua designação oficial, que “temporariamente” está confinado à ilha. Em 1979, os EUA decidiram estabelecer ligações oficiais com a China maoísta e Taiwan – aliada de Washington – era então o principal obstáculo nesse processo. Encontrou-se uma solução que é mantida até hoje: os EUA comprometem-se a reconhecer a existência de “uma só China”, tal como Pequim exigia, mas a formulação vaga do memorando permite interpretações favoráveis dos dois lados do estreito.

“É necessário algum tipo de ambiguidade”, reconhece o secretário-adjunto para os Assuntos Continentais, Chang Tien-chin. 

A irritação chinesa com Taiwan acentuou-se especialmente após a tomada de posse de Tsai, que foi eleita como uma defensora da independência da ilha. Os seus antecessores do Kuomintang – Tsai pertence ao Partido Democrático Progressista – eram peritos numa espécie de malabarismo diplomático. Reconheciam a existência de “uma só China” e alimentavam as esperanças de uma reunificação mas conduzida, na sua óptica, sob a égide do regime em vigor em Taiwan. Este arranjo era suficiente para que Pequim demonstrasse uma menor animosidade em relação às autoridades taiwanesas e chegou mesmo a haver um clima de grande aproximação. Em 2015, Xi Jinping encontrou-se com o então Presidente taiwanês, Ma Ying-jeou em Singapura – a primeira ocasião em que líderes dos dois territórios se encontraram pessoalmente.

Com Tsai, as relações são radicalmente diferentes. Os media continentais levam a cabo grandes campanhas contra a líder taiwanesa, descrevendo-a como “extremista” e até insultando-a por ser solteira.
A eleição de Tsai foi encarada pela generalidade dos observadores como a expressão de um desejo de independência em relação à ilha, rejeitando por completo uma reunificação com a China continental. Várias sondagens mostram que as gerações mais novas, nascidas numa Taiwan democrática e próspera, totalmente diferente da China que reivindica, se identificam como “taiwaneses”.

Ninguém o pode dizer abertamente. A menção a uma declaração de independência formal desperta sorrisos incomodados entre os dirigentes de Taiwan – Pequim nunca o iria tolerar e um conflito aberto seria a consequência mais provável, dizem. Mas também parece não haver um sentimento de urgência para um desfecho. Taiwan, explicam, tem uma Presidente democraticamente eleita, um Parlamento, forças militares, uma bandeira, um hino. “Não há necessidade que digamos nada mais do que isto”, afirma Wu. Às vezes, a ambiguidade é mesmo necessária.

O jornalista viajou a convite do Conselho Económico e Cultural de Taipei

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