Euro: Hotel Califórnia?

O “pai” do euro, principal arquitecto, foi o alemão Otmar Issing. O seu principal desafio era criar uma moeda única “irreversível” e, mais do que isso, considerada como irreversível, sem transferências orçamentais entre países membros, sem que o BCE estivesse obrigado a financiar os países membros quando estes fossem incapazes de refinanciar a sua dívida pública.

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Such a lovely place

 […]

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But you can never leave!'”

Extracto da lírica da música Hotel Califórnia, dos Eagle, © Warner/Chappell Music

 

Uma leitura atenta do “plano B” de Savona et al. de 2015, que defende a saída da Itália da zona euro, revela que é quase uma cópia do plano de Roger Bootle de 2012, facto que os autores do “plano B” reconhecem logo no início da apresentação. Mas a linguagem utilizada é muito dura, chocante mesmo. Daí o abalo que provocou, nos mercados e não só, a indicação de Paolo Savona para ministro da Economia (e Finanças) do novo governo italiano.

Roubini e Rosa (1 de Junho) pensam que o caminho da Itália no euro estará a chegar ao fim. Carmen Reinhart (31 de Maio) exagera ao assumir que a dívida das Administrações Públicas e do Banco Central de Itália ascende a 160% do PIB defendendo, por isso, que a dívida pública de Itália terá de ser reestruturada.

Temos assim dramatismo, q.b., por parte de nomes sonantes da macroeconomia!

Mas afigura-se um erro assumir que o fim do euro estará para breve.

Para se compreender porque é tão difícil para um governo advogar e implementar uma saída do euro é necessário ter em conta alguns detalhes da arquitectura da zona euro.

Os países com moeda própria (e com baixos níveis de dívida externa) podem, no limite, ordenar ao respectivo banco central que adquira dívida pública (i.e., monetize a sua dívida). Mas, os países membros da zona euro não podem impor ao BCE que adquira a respectiva dívida pública. Estão obrigados a vender essa dívida pública nos “mercados” processo que, em países como Itália e Portugal, somente passa a desempenhar um papel relevante a partir dos anos 80 e 90. Antes, a dívida pública era directamente adquirida pelo respectivo Banco Central no mercado primário, i.e., quando o soberano vendia pela primeira vez a sua dívida pública. A Itália abdicou em 1981 desse mecanismo em resultado de intervenções de responsáveis alemães ao mais alto nível. Portugal, nos anos 90.

O “pai” do euro, principal arquitecto do seu desenho, foi o alemão Otmar Issing. O seu principal desafio era criar uma moeda única “irreversível” e, mais do que isso, considerada como irreversível, sem transferências orçamentais entre países membros, sem financiamento directo das Administrações Públicas dos países membros e sem que o BCE estivesse obrigado a financiar os países membros quando estes fossem incapazes de refinanciar a sua dívida pública nos mercados.

A solução encontrada foi a criação do sistema de compensações de pagamentos TARGET2 entre Bancos Centrais Nacionais da zona euro. O euro é (aparentemente) irreversível porque os bancos comerciais da zona euro são capazes de converter, de forma teoricamente ilimitada e quase automática, os depósitos dos seus clientes – moeda bancária denominada em euros, mas que não são euros do BCE – em euros emitidos pelo BCE. O Eurosistema (BCE e Bancos Centrais Nacionais) é um emprestador de primeira instância à banca da zona euro, mas não aos Estados da zona euro. Aos bancos não é exigido qualquer programa de ajustamento com condicionalidade estrita para obter empréstimos em euros do Eurosistema, estando obrigados "apenas" a cumprir os requisitos prudenciais de capital e liquidez e de entregar em troca "colateral" (garantias) aceites pelo Eurosistema. Essas garantias podem ser criadas, do nada, pela banca, por exemplo, no passado, através da compra mútua de dívida entre bancos.

Porém, o BCE reservou-se de muita latitude e discricionariedade neste sistema: pode excluir bancos individuais do acesso às operações de refinanciamento do Eurosistema sem ter de fundamentar essa decisão, como já fez no passado; pode exigir à banca de um dado país membro (e já o fez, várias vezes, no passado) que deixe de financiar as suas Administrações Públicas; e pode limitar a capacidade de financiamento da banca de um país, impondo moratórias de facto, como ocorreu em vários países, mas particularmente no caso da Grécia, em 2015, onde os bancos fecharam para “férias” durante três semanas. Os controlos de capital (ilegais, à luz do Tratado Europeu) introduzidos nessa altura ainda permanecem parcialmente em vigor, três anos decorridos.

Nos países devedores da zona euro, as elites e a população com elevadas poupanças defendem o euro porque temem pelas suas poupanças. Por outro lado, nos países credores da zona euro sabe-se que sem o euro os países devedores serão incapazes de algum dia pagar a dívida aos países credores. Por último, e de modo algum irrelevante, o bem-estar de responsáveis e funcionários do BCE e de outras instituições europeias depende da continuação do euro.

Maquiavel certamente consideraria brilhante o desenho da zona euro e a forma como é assegurada a “irreversibilidade do euro”.

Dada esta arquitectura do euro, se o novo governo italiano "ousar" questionar a presença da Itália no euro, verá tanto o mercado de dívida soberana como o sistema bancário, atravessar enorme instabilidade. Como reagiria o povo italiano a uma moratória ao levantamento de depósitos bancários? E como, do ponto de vista dos próprios interesses pessoais, os representantes do eleitorado do Movimento Cinco Estrelas e da Liga – deputados e senadores da república italiana, muito bem remunerados em euros – poriam dessa forma em risco e em causa o seu nível de vida e o seu bem-estar? Por que abanar o barco dessa forma?

O mais provável não será que se acomodem uma vez chegados ao poder?

Ou seja, a força do euro, não estará no suposto poder da economia da Alemanha. O cordão umbilical do euro está nas poupanças na forma de depósitos bancários dos aforradores (e credores) da zona euro, poupanças essas distribuídas de forma muito desigual entre países e, dentro de países, entre cidadãos.

Paradoxalmente, o risco de desintegração do euro nunca foi tão elevado como hoje é. Fundamentalmente porque a política de austeridade adoptada pelas autoridades europeias, alterou o equilíbrio político de forças entre aforradores e cidadãos em geral nos países periféricos.

Acresce ainda que o risco de fugas de capitais é menor do que se pensa. Com efeito, dificilmente países como a Alemanha aceitarão converter depósitos em euros de não residentes para "euros alemães". As eventuais fugas de capital ocorrerão para outras moedas como o dólar, o franco suíço e para activos reais, como propriedade imobiliária na Alemanha. Nem mesmo títulos de dívida pública da Alemanha detidos por não residentes estarão a salvo, se o euro se desintegrar.

Do processo de fugas de capitais resultariam perdas adicionais para países credores, como a Alemanha, por via de desequilíbrios crescentes do sistema TARGET2, que nunca seriam posteriormente pagos pelos países devedores. Ou seja, são a Alemanha e outros países credores, e não Portugal ou a Itália, que têm um incentivo para reduzir a fuga de capitais dos países "periféricos".

Se tal processo de desintegração viesse a ocorrer, países hoje devedores da zona euro – porque deixariam de pagar parte da sua dívida externa – poderiam tornar-se, de um dia para o outro, em países credores do resto do mundo (i.e. países pobres tornar-se-iam em países ricos), com melhorias muito significativas da sua posição de investimento internacional, enquanto o reverso poderia ocorrer aos países credores como a Alemanha.

É sempre difícil antecipar como agirão os actores políticos europeus, nomeadamente porque poderão avaliar mal a situação ou porque poderão não dispor da informação e conselho adequados. No entanto, afigura-se que a Alemanha sentir-se-á compelida a encontrar um compromisso na zona euro, particularmente no contexto da crise comercial crescente com os EUA. São frentes "de guerra" a mais. O processo europeu de reestruturação de dívidas excessivas poderá estar, surpreendentemente, ao virar da esquina!