Discricionariedade no acesso à saúde “é endémica em Portugal”

Estudo que engloba várias cidades europeias analisa acesso à saúde em bairros "superdiversos". Mouraria e Lumiar foram escolhidos pela secção portuguesa, liderada por socióloga do ISCTE. Discricionariedade com que os utentes são atendidos agrava-se para imigrantes.

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Discricionariedade com que os utentes são atendidos agrava-se no caso dos imigrantes Rui Gaudêncio

Para um imigrante aceder a um Centro de Saúde tem de levar um atestado de residência, passado pela Junta de Freguesia onde vive. Mas nem todas as juntas de freguesia pedem os mesmos documentos. Na de Santa Maria Maior, que engloba as zonas turísticas de Lisboa como a Baixa e Castelo, exigem a cópia do contrato de arrendamento da casa ou do quarto e a identificação do senhorio. O papel custa cinco euros; se for um pedido com urgência sobe para os 20 euros. Na do Lumiar esse documento não é necessário.   

Este é um dos exemplos dados pela socióloga Beatriz Padilla, do Centro de Investigações e Estudos de Sociologia (CIES-IUL) do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, coordenadora do The Welfare Bricolage project (UPWEB), projecto que pretende avaliar a forma como os residentes em bairros onde há superdiversidade gerem o seu acesso à saúde em Portugal, Reino Unido, Alemanha e Suécia.

O projecto irá ser apresentado em Lisboa no fim de Junho e nessa altura será possível ter mais comparações entre países. Para já, o exemplo serve para ilustrar uma das especificidades portuguesas: a discricionariedade com que os utentes do sistema de saúde são atendidos e que se agrava no caso de esses utentes serem imigrantes extra-comunitários e imigrantes em situação irregular, segundo a socióloga.

A discricionariedade é o poder dos funcionários públicos tomarem as suas próprias decisões o que faz com que atendam as pessoas de forma diferente.

Determinado tipo de documentação exigida pela freguesia de Santa Maria Maior a um imigrante que está em situação irregular, e a quem por lei não pode ser negado o acesso à saúde, penaliza-o, afirma Beatriz Padilla. Esta exigência “é bastante excludente” pois “muita gente vive em quartos” fazendo arrendamento clandestino exactamente porque não tem documentos, continua. São, no fundo, “barreiras externas ao sistema de saúde mas que acabam por ter impacto e que dificultam o acesso ao serviço”. Por um lado, o Estado dá a possibilidade de isenção de taxa, por outro, para ter acesso a ela é preciso pagar outra taxa maior: “Há uma incongruência que não estava no espírito da lei”, comenta.

A discricionariedade nota-se não apenas de freguesia para freguesia mas também dentro dos mesmos centros: se há profissionais que querem ajudar mas não conseguem por causa do sistema, noutros casos as barreiras são colocadas pelos próprios funcionários. “A discricionariedade é algo negativo”, afirma, porque “cada um pode inventar um novo critério”, continua. “Mas isto é endémico em Portugal. É importante existirem critérios claros."

A barreira da língua

Um dos objectivos do estudo é perceber como é que as pessoas resolvem os seus problemas de saúde, que recursos têm, como "se desenrascam", em linguagem coloquial. “Portugal tem um estado social menos desenvolvido do que o inglês, sueco ou alemão”, refere.

Por outro lado, os habitantes em Portugal tentam resolver os problemas dentro do Sistema Nacional de Saúde, o que já não acontece com tanta frequência em países como a Alemanha, onde as pessoas são encaminhadas para outras terapias alternativas, reconhecidas pelo sistema, e portanto há uma mistura de abordagens.   

Numa coisa os imigrantes irregulares estão em melhores condições em Portugal do que na Alemanha, afirma: os profissionais de saúde são obrigados a reportar às autoridades as situações irregulares, algo que em Portugal não se faz.

O estudo - na verdade são vários papers - foi feito com 45 entrevistas a moradores do Lumiar e da Mouraria (que pertence a Santa Maria Maior), dois bairros com uma mistura cultural e socio-económica, e com 21 entrevistas semi-estruturadas a profissionais de saúde, combinando dados e técnicas de etnografia.  

Da parte dos profissionais de saúde a grande barreira identificada foi a língua, sobretudo no caso de imigrantes dos países sul-asiáticos: não falarem português ou falarem mal inglês torna a comunicação difícil e até frustrante, queixaram-se.

Porém, apesar de existirem sistemas de ajuda à tradução como uma linha telefónica, estes não foram mencionados ou foram criticados como ineficazes: apenas quatro dos 21 profissionais não identificaram a língua como obstáculo.

Entre os que tentam ultrapassá-lo, há quem recorra a várias técnicas como usar o Google translate. "As crenças culturais são interpretadas de maneira diferente pelos profissionais. Alguns olham para a cultura como barreira e outros sentem necessidade de saber mais sobre as diferenças", conclui.

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