“So far, so Trump”

No fundo, Trump dá-se melhor com os homens fortes que lideram a China e a Rússia do que com os líderes da aliança ocidental. Citando uma das correspondentes da CNN no Quebeque, “so far, so Trump”. Próximo destino Singapura.

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1. Nem os eurodeputados da CDU estavam à espera do discurso que a chanceler resolveu fazer em Munique, na quarta-feira passada, nos “dias de estudo” do PPE (Partido Popular Europeu) que reúne os partidos de centro-direita da União Europeia. Esperavam uma intervenção de circunstância, com algumas ideias suficientemente vagas para deixar muita coisa em aberto, na contagem decrescente para a cimeira europeia de 28 e 29 de Junho, inicialmente prevista para dar vida a uma agenda europeia mais ambiciosa e mais de acordo com os tempos actuais.

Não foi assim. Fazendo as contas à sua longa intervenção, ela pode ser vista como a resposta que toda a gente esperava à visão que o Presidente francês apresentou em Setembro passado na Sorbonne e que continuava à espera da chanceler. Houve os problemas da negociação de um novo governo e as dificuldades acrescidas de Merkel, que saiu enfraquecida das eleições de Setembro. Houve a entrevista que concedeu há dez dias ao jornal das elites alemãs, o Frankfurt Allgamein Zeitung em que começou a abrir o jogo e, pela primeira vez, apresentou alguns (ainda poucos) pontos de convergência com Macron  no que diz respeito à reforma da zona euro. Em Munique, foi mais longe. Apresentou as suas ideias de forma sistemática e clara, incluindo o desafio fundamental de fazer dela um actor global num mundo que, entretanto, ficou irreconhecível. Concorde-se ou não com ela, a Europa que defende representa uma escolha política fundamental: depois de quase uma década de crise em que tudo parecia estar em causa na integração europeia e aumentavam as dúvidas sobre o interesse e o empenho alemão na Europa, a chanceler veio dizer que a União continua a ser um interesse vital do seu país. A questão alemã voltou muitas vezes ao debate europeu. É útil recordar alguns factos.

A resposta à crise do euro foi ditada por Berlim, sem grande contemplação pelos países mais frágeis que tiveram de cumprir processos de ajustamento económica e socialmente violentos. A perspectiva de uma Europa alemã pairou sobre o destino da Europa. A economia era tudo, a defesa um pormenor. Hoje, o mínimo que se pode dizer é que a aprendizagem de Merkel foi, em alguns momentos, demasiado lenta e quase desesperante. Basta recordar um exemplo. Em 2012, quando a França (ainda com Hollande) decidiu intervir no Mali para impedir o avanço de forças islamistas com ligações ao Daesh sobre a capital do país, o comentário da chanceler não podia ser mais displicente. “Não tencionamos pagar as guerras da França”. Hoje tropas alemãs estão no Sahel em apoio das francesas e a Alemanha participa nas missões de dissuasão da NATO na fronteira dos Bálticos com a Rússia. A chanceler coloca a defesa e segurança no topo da sua agenda europeia e não apenas de forma retórica. Apoia as propostas de Macron e aparentemente vai ainda mais longe. Na sexta-feira, Manfred Weber, o líder do Partido Popular no Parlamento Europeu e anfitrião do encontro de Munique, disse aos jornalistas que o seu país vê com bons olhos a evolução da defesa europeia para um exército europeu em 2030. Nada disto quer dizer que a chanceler desistiu da NATO. A relação transatlântica, que foi um dos dois pilares sobre os quais a República Federal foi criada depois da Guerra (a França foi o segundo) continua a ser indispensável na perspectiva da chanceler. No domínio da segurança mas também da economia, apesar das circunstâncias actuais, com um Presidente americano que ignora os aliados, despreza a integração europeia e vê a Alemanha como o alvo principal.

2. O que fez mudar a chanceler? Ela própria respondeu: uma ordem internacional que mudou radicalmente. Que deixa a Europa mais sozinha e mais dependente da sua própria vontade, perante a desordem regional e internacional e onde as ameaças proliferam. A Europa fez um esforço inicial para manter as pontes com Trump. Continua a tentar fazê-lo. O resultado tem sido igual a zero, como se viu no Irão ou agora na “guerra comercial” que desencadeou contra a Europa e o Canadá, justamente os mais antigos e fiáveis aliados dos EUA, invocando uma questão de “segurança nacional”.

É uma situação completamente nova para a Europa. Pela primeira vez desde a II Guerra, um Presidente americano é abertamente contra a integração europeia que a própria América ajudou a criar. Se acrescentarmos a mudança estratégica da Rússia, que se traduz numa acção externa agressiva nas fronteiras da Europa e que ignora a lei internacional, o ambiente estratégico mudou radicalmente. Finalmente, a mensagem talvez mais importante da chanceler em Munique: nenhum dos desafios que a Alemanha enfrenta, da segurança à economia, pode ser resolvido fora do quadro europeu. Falta ainda ver como se vai traduzir este renovado compromisso com a Europa. Por enquanto, aquilo que Merkel está a oferecer a Macron sobre a reforma da zona euro ainda não é convincente. No próximo dia 19 a chanceler e o Presidente têm encontro marcado para acertar um compromisso sobre o “renascimento” europeu em torno de três domínios fundamentais: o euro, a defesa e as migrações. Como dizia um eurodeputado alemão em Munique, ninguém ainda explicou aos alemães de forma suficientemente clara as vantagens que tiram do euro e do mercado único.

3. Os riscos que a Europa enfrenta vão hoje muito mais longe, desafiando as suas democracias nos seus fundamentos. A ascensão dos populismos deve-se, em boa medida, à rejeição de uma Europa da qual os eleitores desconfiam, que não defende os seus interesses nem resolve os seus problemas, da economia à imigração, passando pelo seu modo de vida. Contrariar a maré é uma tarefa ciclópica que não permite perder um minuto. Se ainda for a tempo, o que não é seguro. A xenofobia alastra a uma velocidade surpreendente.

Como referia na sexta-feira o Financial Times, a reunião de Munique tinha um objectivo específico: avaliar o impacte destas transformações políticas na próxima composição do Parlamento Europeu que vai sair das eleições de Maio de 2019. As perspectivas não são as melhores. Para o centro-esquerda já eram bastante más. Começam a sê-lo também para o centro-direita. O próximo PE terá menos europeístas e mais eurocépticos. Em eleições que permitem um voto sem consequências políticas nacionais, os partidos anti-sistema estão como peixe na água. E resta a incógnita Macron, cuja República em Marcha ainda não definiu em que grupo quer ficar ou se tem companhia suficiente para criar um novo grupo.

4. Enquanto escrevo, a CNN vai dando conta do que se está a passar na reunião do G7 no Quebeque. Chama-lhe uma reunião do “G6 mais um.” Ou, por outras palavras, todos contra Trump e a sua decisão de penalizar os seus principais parceiros comerciais com o aumento das tarifas sobre as suas exportações. Os países europeus do G7 (são quatro) ainda não têm uma posição definida. Macron quer liderar o “contra-ataque” juntamente com Justin Trudeau, o anfitrião da cimeira. A Alemanha, que tem imenso a perder, é mais prudente. As ameaças de Trump à importação dos seus automóveis chega para deixar os alemães nervosos. Fora da Europa, é o seu maior mercado. Não contente com a “guerra comercial” que declarou contra os seus principais aliados, o Presidente americano resolveu lançar uma granada de que ninguém estava à espera: o G7 tem de voltar a ser G8, incluindo a Rússia. Nada fazia supor mais esta surpresa. Não houve qualquer mudança recente no comportamento de Putin que permita esta reviravolta. Continua a ocupar a Crimeia, a desestabilizar a Ucrânia, a suportar o regime criminoso de Damasco e a interferir nas eleições das democracias ocidentais. No fundo, Trump dá-se melhor com os homens fortes que lideram a China e a Rússia do que com os líderes da aliança ocidental. Citando uma das correspondentes da CNN no Quebeque, “so far, so Trump”. Próximo destino Singapura.

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