Todas as famílias são inconvenientes, mas poucas como esta

The Excavation, último livro de Max Andersson, é uma viagem alucinante que parte dos sonhos deste autor de BD e que carrega as suas marcas habituais, sobretudo o humor negro, mordaz. Ainda não está editado em Portugal, mas vale bem a pena procurá-lo.

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The Excavation é um volume com um desenho por cada uma das suas 375 páginas. A história, dividida em sete capítulos, chega a ter duas narrativas em paralelo, mas o leitor nunca se perde.

Pela primeira vez, Max Andersson resolveu usar os seus sonhos — ou pesadelos, para ele tanto faz o que lhes chamamos — como matéria-prima para um dos seus livros. Ao invés de passar muito tempo, como lhe é habitual, a escrever um guião alicerçado apenas na imaginação, acabou por passar muito tempo a organizar uma narrativa que é também ela ficção mas que saiu do “arquivo de histórias” que mantém nos cadernos onde anota o que lhe passa pela cabeça enquanto dorme. Histórias que partem das recordações que guarda, sobretudo da infância e do começo da adolescência, e de “memórias de coisas que nunca aconteceram”. Estranho? Confuso? Sim. E o que há de mais próximo de um retrato conciso da substância de que é feito The Excavation, o mais recente livro deste autor sueco que se divide entre a BD e o cinema de animação.

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Max Andersson começou a trabalhar neste livro aos 35 anos e só terminou quando já tinha feito 52. O autor garante que o homem que fez o primeiro desenho é diferente do que fez o último Helena Ahonen

O Ípsilon foi encontrá-lo no Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, que termina no domingo, no meio das pranchas de alguns dos seus títulos — Lolita’s Adventures (1988), Car-Boy (1999), Bosnian Flat Dog (2004, em parte publicado em Portugal na revista da Bedeteca de Lisboa como Cão Capacho Bósnio), Toy Comix (2007)  e, claro, de The Excavation (2017, edição americana da Fantagraphics Books) — e  fez com ele uma viagem pelos bastidores desta obra que já teve oportunidade de apresentar em Cracóvia, Moscovo, Aix-en-Provence, Montpellier e Paris.

The Excavation, explica, começou por ser uma short story, e não passaria disso se Andersson não tivesse gostado tanto de trabalhar a partir dos seus próprios sonhos. “Tinha tantos — todos temos, embora a maioria se perca para sempre — que achei que valia a pena usá-los. Costumo anotá-los. É um hábito que tenho desde meados dos anos 1980, desde que percebi que há várias técnicas para não os esquecermos.” Há mais de 30 anos, portanto, que o autor mantém este arquivo em actualização. E como é que faz?

“Regra geral só nos lembramos de um momento mais forte do sonho ou de uma personagem, e é nisso que devemos concentrar-nos. Depois insistimos e o mais provável é vir-nos à cabeça outro momento interessante. Depois começamos a tentar relacionar estes momentos. É como fazer um daqueles desenhos em que se ligam pontos [numerados] uns aos outros. Isto pode levar uns 20 minutos em que temos de estar mesmo concentrados.” O desafio é não voltar a adormecer a meio do processo. “Assim que temos a história toda, apercebemo-nos de que é grande e de que está cheia de pormenores. É aí que devemos escrevê-la para, então, podermos voltar a adormecer.”

Foi ao criar este arquivo nos seus cadernos que Max Andersson (n. 1962) se apercebeu de que muitos dos seus sonhos eram sobre a sua família, de que se foi afastando progressivamente desde que saiu de casa aos 15 anos. Queria escrever sobre a sua relação com os pais e os dois irmãos, mas não sabia bem como. “Apercebi-me de que, na realidade, não conhecia a minha família, mesmo que nos meus sonhos ela estivesse muito activa e fizesse coisas estranhas”, diz. Resolveu, então, pegar no que imaginava enquanto dormia e usá-lo como quem edita material para um filme. “Isto é uma colecção de sonhos que fui encadeando para contar histórias. Não inventei nada, mas o que resulta desta montagem é claramente uma ficção.”

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The Excavation é um volume com um desenho por cada uma das suas 375 páginas. A história, dividida em sete capítulos, chega a ter duas narrativas em paralelo, mas o leitor nunca se perde

The Excavation é uma viagem alucinante que os críticos da especialidade têm ligado sem esforço ao universo “negro” e “surreal” característico do autor sueco. O volume com 375 páginas, com uma ilustração por cada uma (há apenas uma excepção), apresenta-nos uma família que não é, certamente, como as outras.

Dezoito anos para fazer um livro

A história, que está permanentemente a desafiar aquilo que julgávamos já saber sobre as personagens, conta-se ao longo de sete capítulos. Começa com o protagonista de quem nunca se saberá o nome, um alter ego do autor, a levar a namorada a casa dos pais para descobrir, à chegada, que está soterrada (é mesmo objecto de escavações arqueológicas) e que já nada é como ele o recorda, a começar pela mãe, que mais à frente se há-de multiplicar, e pelo pai, que insiste em dividir os filhos em peças para os remontar em seguida, qual Dr. Frankenstein.  

Foram precisos 18 anos para que Andersson concluísse esta história, que às tantas se divide em duas que correm paralelas — a dos homens (protagonista, pai e irmão) e a das mulheres (mãe e namorada)  — antes de tudo regressar ao ponto de partida. O homem que começou este livro, assegura este cartoonista alternativo que está habituado a que juntem ao seu nome a palavra underground, não é o mesmo que o deu por concluído. “Só muito recentemente me apercebi de que mudei muito enquanto fazia isto, talvez porque agora falo muito sobre o livro e antes ele estava apenas dentro da minha cabeça. Quando o comecei tinha 35 anos, quando o acabei 52, e muita coisa acontecera entretanto. Agora vejo mais o meu irmão e a minha irmã do que via há uns anos e sinto que temos muitas coisas em comum, apesar de não termos interagido muito durante quase 30 anos. Temos a mesma infância. Eu e o meu irmão, por exemplo, somos parecidos na maneira como nos comportamos, como pensamos.”

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Ao logo dos 18 anos que este livro demorou a amadurecer — Andersson terminava um capítulo e só voltava ao seguinte dois ou três anos depois, envolvendo-se noutros projectos pelo meio —, o autor manteve o fim em aberto. Precisou de o fazer, diz, para permanecer interessado na história, deixando que as personagens tomassem conta dela.

Neste The Excavation há um cadáver debaixo da mesa da cozinha, condenações à morte, restaurantes de luxo numa cave e um reality show pornográfico na casa dos vizinhos do lado. Tudo servido com uma crueza e um humor mordaz, evidentes em diálogos e propostas desconcertantes.

A associação entre o universo dos seus livros e o de Franz Kafka é algo a que o autor já se habituou. Os leitores fazem-na por causa deste lado mais negro, mas sobretudo devido a um certo “surrealismo checo” capaz de criar “narrativas sonhadas” que sempre lhe interessou e que encontra também, embora sem a “economia de meios” de o autor de A Metamorfose, na escrita do polaco Bruno Schulz, que tem mais detalhe, mais texturas e cores.

“Há muitos anos que não leio Kafka, que era um dos meus preferidos na adolescência. Não sei bem o que penso dessa associação entre o meu trabalho e a sua escrita, mas não é difícil perceber por que razão as pessoas a fazem: também há no que faço um lado sonhador, estranho, também ele é sobre as relações familiares.”

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Ainda que diga que tudo o que faz é sobre si mesmo, a história que Max Andersson conta em The Excavation está longe de ser autobiográfica — basta começar a lê-la, aliás, para que isso fique claro — ou de ser contada nos moldes tradicionais. “Não foi um projecto difícil, só precisou de tempo. Se a contasse de maneira realista, seria preciso lidar com as reacções das pessoas que lá aparecem. Teria de me perguntar: ‘Quão honesto posso ser?’ Neste caso, as personagens são versões de mim, não representam a minha família.”

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Seja como for, Andersson ainda não mostrou o livro aos irmãos, mas tenciona fazê-lo. O pai já morreu e a mãe é hoje incapaz de ler. “Foi a doença da minha mãe que nos aproximou a todos. Tem alucinações e falamos muito sobre elas. Agora estou muito mais tempo com ela do que alguma vez estive na minha vida adulta.”

Se lhe perguntamos por que razão foram precisos 18 anos para terminar The Excavation, e se esse tempo longo teve alguma coisa que ver com o facto de ser um livro sobre a família, o autor faz uma pausa: “Quando temos alguma coisa que nos sabe bem, queremos que dure. É como uma barra de chocolate perfeita, temos de a comer em pequenas porções. Acho que para mim foi saudável manter uma certa distância da minha família por uns tempos para que conseguisse encontrar o meu caminho de volta a ela. Não sei se este livro ajudou, mas sei que não quero tornar a pegar nos meus sonhos para fazer outro.”

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