Nesta ópera de Mozart a moral é a de quem sabe o que é estar preso

Trinta jovens reclusos da prisão de Leiria e cinco solistas profissionais, sob a direcção da Sociedade Artística e Musical de Pousos, participam na segunda parte do projecto Ópera na Prisão, apoiado pelo Portugal Inovação Social e pela Fundação Gulbenkian.

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Os movimentos dos reclusos querem-se largos, como as vozes do coro e solistas que ecoam Mozart por entre vidros partidos de um espaço quase abandonado – um pavilhão da Quinta do Lagar d’El Rei transformada, nos anos 1940, no Estabelecimento Prisional de Leiria para jovens. Tudo o que fazem, porém, está absolutamente delimitado pelo rigor dos horários e o acompanhamento obrigatório dos guardas. Às 19h estão fechados nas suas celas.

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Os movimentos dos reclusos querem-se largos, como as vozes do coro e solistas que ecoam Mozart por entre vidros partidos de um espaço quase abandonado – um pavilhão da Quinta do Lagar d’El Rei transformada, nos anos 1940, no Estabelecimento Prisional de Leiria para jovens. Tudo o que fazem, porém, está absolutamente delimitado pelo rigor dos horários e o acompanhamento obrigatório dos guardas. Às 19h estão fechados nas suas celas.

Neste pavilhão, que foi uma fábrica de cerâmica e depois uma tanoaria (entretanto desactivada) para as actividades dos reclusos, as horas dedicadas aos ensaios ganham assim a dimensão do que é excepcional e raro. Do que “salva e redime”, como dirá o encenador cubano, David Ramy, professor de teatro na Sociedade Artística Musical dos Pousos (Leiria).

“O projecto está ganho”, diz Ramy, desde o dia, na semana passada, em que ouviu alguns presos, enquanto o ajudavam a limpar o pavilhão para o espectáculo no qual participam, a cantar árias da Ópera de Mozart Così Fan Tutte.

“São reclusos e estão a cantar árias complicadíssimas de Mozart. Abriram o seu leque de sons”, acrescenta David Ramy, com entusiasmo, no intervalo de um dos ensaios, da última semana, para o espectáculo de estreia, neste sábado à tarde, que terá a Orquestra Gulbenkian a tocar dentro de uma prisão.

O Projecto Ópera na Prisão nasceu na Sociedade Artística Musical dos Pousos (SAMP) – que em 2016, numa primeira parte, levou a ópera de Don Giovanni à Gulbenkian em Lisboa. 

Nesta segunda parte do projecto, que resulta de uma parceria com a prisão de Leiria, a SAMP propõe Só Zerlina, ou Così Fan Tutte. A estreia deste sábado é aberta ao público na prisão. Nos dias 12 e 13 de Julho, será a vez de 20 dos 30 reclusos que participam no projecto irem à Gulbenkian representar e cantar.

Entre o grupo original, não poderão ir a Lisboa aqueles que cumprem prisão preventiva, ou têm como pena acessória uma ordem de expulsão de Portugal (acontece com o brasileiro Michael Ramos), ou ainda um castigo por uma infracção disciplinar nos últimos seis meses.  

O envolvimento das famílias num dos coros do espectáculo, em que também participam 10 funcionários do Estabelecimento Prisional ou da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, é uma das novidades desta segunda parte do projecto que começou em 2017. “A chave para o sucesso da não-reincidência é a família”, salienta o director artístico Paulo Lameiro. "E por isso, também fomos ensaiando com eles” nas localidades onde residem, país fora.

Mães, irmãos, namoradas ou amigos vão subir ao palco. “A mãe, o irmão, a namorada são quem estará à porta da prisão quando os jovens terminarem a pena. Têm que ser envolvidos”, diz Paulo Lameiro.

Nem todos os jovens têm família a participar no projecto. “Nem todos os jovens têm família”, enfatiza Lameiro. Alguns não têm como aproveitar os cinco minutos diários a que têm direito para falar com alguém do telefone da prisão. 

Para os que têm família, a música, "esta música" será uma forma de aproximação, através dos ensaios, do espectáculo, da partilha em vista de um objectivo comum, como metáfora do futuro dos jovens enquanto projecto também pertencente às famílias. 

Ódio e crime, amor e morte 

Para os reclusos, a presença da família tem um significado, como o tem o próprio espectáculo. “Toda a grande ópera aborda a natureza humana, o crime, o ódio, a morte, o amor. Coisas que eles conhecem muito bem. Ou que desconhecem em absoluto”, expõe Paulo Lameiro.

Ao libreto foram adaptados retalhos da vida dos reclusos que os próprios escolheram. “Na ópera, há sempre uma moral. A linguagem é do Mozart. Aqui queremos que seja a moral do Mathieu, do Fábio, do Joel, do Tiago”, diz o director artístico. 

Paulo Lameiro realça a importância de os jovens partilharem o palco com cantores profissionais: para que se deixem tocar, pela primeira vez, pela emoção e a intensidade da ópera; para que essa nova experiência lhes abra o espaço necessário para exprimir as suas próprias emoções. 

O projecto estende-se por três anos: no primeiro, os presos conhecem os artistas e tomam contacto com instrumentos musicais – “nós aprendemos rap ou afrobeat e eles aprendem violino ou clarinete”, diz Paulo Lameiro; no terceiro e último, vão criar neste espaço onde ensaiam um local permanente para o desenvolvimento de actividades artísticas, um espaço que será aberto à comunidade e que ficará com o nome de Pavilhão Mozart; na fase actual (a segunda) montam a ópera, ao lado dos cinco solistas Alexandra Bernardo, Cátia Moreso, Carolina Leal, Pedro Rodrigues e Jorge Martins e do maestro José Eduardo Gomes.

O Projecto Ópera na Prisão é apoiado pelo Portugal Inovação Social e pela Fundação Calouste Gulbenkian no âmbito do seu programa Partis II – Práticas Artísticas para a Inclusão Social que existe desde 2015 e apoia projectos que privilegiam a arte como meio de intervenção social. A ópera Don Giovanni, em moldes semelhantes, teve o apoio do Partis I.

Com a mesma intensidade

No seu leque de actividades, os profissionais da SAMP, associação do concelho de Leiria, sob a responsabilidade do músico Paulo Lameiro, levam a música a hospitais e prisões, a serviços de pediatria e de psiquiatria e também a doentes em estado terminal no hospital ou em casa – no âmbito do programa Aqui Contigo.

David Ramy conta que há muito pouco tempo cumpriram o desejo de um doente em fim de vida que queria ouvir Stairway to Heaven, dos Led Zeppelin. “Tudo aquilo que esvazia a alma também enche”, diz sobre o programa Aqui Contigo. “Mata e salva com a mesma intensidade.” E dentro de grades? “Aqui, a música salva e redime”, diz com o mesmo olhar que cintila.

Alguma coisa mudou em Fábio Veiga com este projecto. “O relacionamento com as pessoas”, sintetiza, antes de se soltar e dizer: “É bom sentir que as pessoas confiam na gente, que nos dão uma oportunidade, que não têm preconceitos por estarmos onde estamos. Sabemos que um dia, quando sairmos daqui, o preconceito pode impedir-nos de ter um trabalho.”

Para Mathieu Pinto (que também faz solos), a ópera “mudou a maneira de ver a música e de percebê-la”. Diz: “Mudou os meus objectivos. Descobri que era capaz de coisas que não sabia.” Cantar ópera, além de cantar rap e de escrever.

É um dos quatro reclusos do coro que deram mais um pouco de si através das letras de uma serenata escrita a várias mãos, com estes versos: “Os anos trancados trouxeram mudança. Abri os olhos e mantive a esperança. (…) Sim, é verdade, um homem consegue mudar. Apesar do azar de uma porta fechar. Abre uma janela, pois a vida é bela. Abraça a derrota e aprende com ela.”

Dos 16 aos mais de 25 anos

Os mais jovens reclusos de Leiria têm 16 anos. A média das idades dos quase 200 presos é 20 anos. Alguns já ultrapassaram os 25 anos, apesar de esta prisão ter sido pensada apenas para receber pessoas até aos 21 anos.

As penas são pesadas: roubos com agressão, omissão de auxílio, pelo menos um homicídio qualificado, em que o recluso “perdeu a cabeça”, depois de uma questão laboral mal resolvida com o ex-patrão. Já cumpriu metade dos 15 anos de pena a que foi condenado.

Com a maioria das penas longas, a luz que lhes dá perspectiva,são as saídas precárias, avaliadas pelos técnicos da Reinserção Social de acordo com o comportamento do jovem e o enquadramento das famílias: nestas saídas, os presos, vão e voltam sem polícia. Mas estas são também ocasiões em que podem recair, não regressar logo, ou (sob pressão dos colegas que ficam) trazer do exterior drogas ou telemóveis, o que os obriga a recomeçar o caminho, dentro de grades, a partir do zero. 

“O mais difícil foi o princípio” dizem Fábio, Tiago e Mathieu. “O vir de fora e cair cá dentro. É um choque. É difícil estar longe da família. Por outro lado, é essa saudade que nos faz reflectir”, acrescenta Fábio.

Michael Ramos tinha 18 anos quando entrou. Agora com 23 anos, está a dois meses de cumprir os dois terços da pena que o levarão à liberdade. Vai directo para o Brasil, apesar de toda a família estar em Portugal, por ter uma pena acessória de ordem de expulsão. Michael fala, como canta. Com toda a segurança: “Quando sair da prisão, quero ir ver uma ópera.”