“Retrocesso civilizacional”

Sou dos que ficaram enormemente dececionados com a posição do PCP relativamente ao direito à uma "morte digna".

Sou dos que ficaram enormemente dececionados com a posição do PCP relativamente ao direito à uma "morte digna". Sou acompanhado nesta minha deceção por muita gente de esquerda e muitos comunistas, mas a opinião que aqui expresso só me representa a mim.

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Sou dos que ficaram enormemente dececionados com a posição do PCP relativamente ao direito à uma "morte digna". Sou acompanhado nesta minha deceção por muita gente de esquerda e muitos comunistas, mas a opinião que aqui expresso só me representa a mim.

Começo, ante de mais, por questões de linguagem: o PCP usa sempre "morte digna" entre aspas e prefere chamar-lhe eutanásia, sem aspas, recorrendo assim à mesma estratégia discursiva de quem fala deliberadamente de aborto e recusa a expressão interrupção voluntária da gravidez. Pior um pouco é que o PCP chegue a usar a expressão “legislação que institucionalize a provocação da morte antecipada” (João Oliveira, 24.5.2018), sabendo bem que legalizar/despenalizar uma possibilidade não é institucionalizá-la…

O PCP diz “compreender e respeitar as opiniões de quem tem diferentes conceções da vida humana, incluindo conceções religiosas”, mas sublinha que a sua posição “em nada se confunde com tais conceções” (www.pcp.pt, 24.5.2018). Ora o que me perturba é que, em contradição flagrante com décadas de luta pelo direito individual à interrupção voluntária da gravidez (IVG), tenha recorrido a argumentos que se assemelham perigosamente a muitos daqueles que a direita política e a Igreja católica usa(ra)m na discussão sobre o aborto, e que o PCP, pioneiro nessa luta, nunca aceitou. Primeiro, a tese de que “a legalização da eutanásia” é um ataque aos “mais pobres”, “expostos à pressão direta e indireta para precipitar a morte”, assemelha-se à ideia de que legalizar o aborto é legalizar a pressão exercida sobre as mulheres mais pobres, insinuando-se em ambos os casos que, em situações em que se trata da soberania individual (e não da dos profissionais de saúde, da família ou do Estado) no governo do corpo e da vida de cada um, a pessoa que toma a decisão de interromper uma gravidez ou uma vida em determinadas circunstâncias não sabe o que está a fazer, e menos o sabe se for “pobre”. Neste mesmo sentido, sustentar que “a legalização da provocação da morte antecipada (…) contribuiria para a consolidação das opções políticas e sociais que conduzem a essa desvalorização da vida humana e introduziria um relevante problema social resultante da pressão do encaminhamento para a morte antecipada de todos aqueles a quem a sociedade recusa a resposta e o apoio à sua situação de especial fragilidade ou necessidade" (João Oliveira), aproxima-se perigosamente de dois dos argumentos clássicos do chamado movimento Pró-vida: legalizar a IVG acabaria por institucionalizar o abandono pelo Estado das mulheres que querem ser mães mas que, por motivos económicos, se veriam “forçadas” a abortar; e que é um “retrocesso civilizacional” e contribui para “desvalorizar a vida humana”, duas expressões também usadas pelo PCP no debate sobre a eutanásia. É lamentável que, a propósito do direito a pedir para morrer dignamente, que o PCP se lembre de dizer que “uma sociedade assente exclusivamente em direitos individuais é uma sociedade deslaçada” (www.pcp.pt, 24.5.2018). O Vaticano não cessa de o repetir a propósito de aborto e eutanásia, de direitos reprodutivos e de casamento para todos… O PCP sabe melhor do que a grande maioria das forças políticas que não há coesão social e consciência coletiva sem reconhecimento e exercício de direitos individuais.

Por último, fico perplexo perante a ambiguidade/falta de rigor do argumento histórico: “a eutanásia tem um passado histórico que ninguém aqui pretende repetir, mas que não pode ser ignorado. A eutanásia foi usada como instrumento de eugenia e de supressão de pessoas a quem não se reconhecia dignidade para viver.” Ou seja, o PCP acha que a eugenia e o programa de extermínio daquelas que os nazis chamavam “vidas inúteis” faz parte do “passado histórico” da reivindicação do direito individual a morrer dignamente, com total respeito pela consciência dos profissionais de saúde e com todas as garantias legais e éticas inscritas nos projetos que estiveram em discussão no Parlamento? Se “ninguém aqui pretende repetir” aquela experiência, porque a invoca o PCP nesta discussão? Sabe o PCP quem o faz sempre que se discute eutanásia?

“O PCP inscreve no horizonte da sua intervenção o direito a uma vida digna em que faça sentido vivê-la e não interrompê-la.” E muito bem. Esse deve ser até o objetivo último de toda a atividade política. E quando tal não for possível, que se reconheça o direito a cada um a interromper a vida em condições tão dignas quanto digna deve ela ser vivida. Em plena consciência e sem violentar a vontade de ninguém.