Manel Cruz goes jazz: de Ornatos Violeta a Thelonius Monk

A Orquestra Jazz de Matosinhos recebe este sábado, na Casa da Música, novo convidado especial. Com ele, Ornatos Violeta, Supernada e Foge Foge Bandido encontram Thelonious Monk.

Foto
NELSON GARRIDO

Manel Cruz nunca se tinha imaginado na pele de Frank Sinatra. Ou de qualquer outro crooner (leia-se: voz a pedir adjectivação condizente com a ideia de veludo, naquele típico registo em que cada palavra parece pairar por cima de um tapete orquestral, assim oferecendo um suplemento de dignidade à mais desolada e sofrida história de amor). Mas há qualquer coisa (coisa subtil, note-se) nesta aventura de cantar com a Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM) que o aproxima por breves instantes desse fantasma de Sinatra. “Há uma música em que canto um pouco mais à crooner e o [maestro] Pedro Guedes no outro dia brincava com isso”, diz o homem que descobrimos enquanto vocalista dos Ornatos Violeta nos anos 90. “Mas é engraçado porque isto acaba por fugir um bocado a essa ideia pré-concebida que tem que ver com jazz. É muito mais do que isso. Tem mais que ver com som.”

“Isto” a que Manel Cruz se refere em conversa com o PÚBLICO na Real Vinícola de Matosinhos – foi neste lugar, que é a casa da OJM desde Janeiro, que se preparou o concerto deste sábado na Casa da Música, no Porto – é o primeiro encontro entre o músico e esta formação que tem por tradição chamar cantores para se colocarem no centro da sua massa sonora e, assim, alargar os seus próprios horizontes enquanto orquestra de filiação jazzística. Já assim o fora com Maria Rita, Mayra Andrade, Manuela Azevedo ou Sérgio Godinho. Desta vez, diz-nos Pedro Guedes, co-autor (com Carlos Azevedo) dos arranjos para temas de Ornatos Violeta, Supernada e Foge Foge Bandido, “esta não era uma escolha óbvia e lógica”. “Mas é um desafio que nos quisemos colocar porque o Manel é um músico muito especial do universo rock – bom compositor, excelente  poeta, com letras de bastante crueza e dureza. A ideia foi pegar neste mundo muito específico e enquadrá-lo dentro da linguagem de uma orquestra de jazz.”

 

O alinhamento foi construído a partir de uma lista fornecida por Manel Cruz, com uma selecção de temas que hoje talvez não repetisse – “se calhar iria mais pelo ponto de vista exclusivamente musical, mas como não tinha nenhum conceito pareceu-me interessante escolher temas dos vários grupos, algo que agora não me parece tão interessante, mas também não estragou nada”, diz o músico –, posteriormente peneirados e arranjados por Guedes e Azevedo para a OJM. Daí que, tal como escutamos em ensaio na antevéspera do concerto, haja um Caminho certo musculado mas desempoeirado que respeita no essencial aquilo que está impresso no álbum do Bandido O Amor Dá-me Tesão / Não Fui Eu que Estraguei, mas também um Onan o rapaz do presente que se torna um tema nervoso e desgovernado com tanto de Mr. Bungle quanto do Charles Mingus de Oh Yeah ou Pittecanthropus Erectus.

“Era a música que me deixava com mais medo”, confessa Manel Cruz. “Nunca a tinha tocado ao vivo porque ao pensarmos tocá-la com o Bandido percebemos que aquilo era uma odisseia, uma montanha, tinha 520 mil coisas a acontecerem, é quase mais cinema ou pintura. Mas aqui pegou-se nas ideias base, construiu-se o resto e inventei pormenores que nem estavam lá. É uma das músicas que mais me surpreenderam e que mais estou a curtir.” Até porque, no momento de juntar os arranjos trabalhados pela OJM e a voz de Manel, nalguns casos foi necessário um reajuste que levou o cantor a repensar o seu próprio espaço dentro daquelas canções. “Nalguns temas mudei o sítio onde ponho a voz, alterei algumas melodias e outras desisti de fazer porque deixaram de ter pertinência, uma vez que aquilo que acontecia na música já não era o mesmo. Tive de me adaptar e construir um mapa para não me perder, porque foi um período de ensaios muito intensivo. Mas a parte que mais me agrada é mesmo jogar nessa imprevisibilidade.”

Um standard adiado

Ao reportório dos Ornatos Violeta, Manel e OJM foram buscar, por exemplo, Notícias do fundo, ao dos Supernada o disparo de Anedota e das canções do Bandido veio ainda Acorda mulher ou Dia sem mentira, numa versão mais aberta e desviada para terras jazzísticas, a flauta a seguir a voz até tudo se tornar bastante livre e sugerir aquilo a que Manel Cruz chama as “orquestras subentendidas” desse projecto de fabricação caseira. Há de tudo, de acordo com um reportório “escolhido para oferecer um espectro largo da variedade musical do Manel”, refere Pedro Guedes. “Nesse sentido, temos desde uma balada pura até rock duro, cheio de distorção, barulho e energia. Tocamos nos extremos.”

E muito lá de trás, talvez com duas décadas de vida em cima, chega ao reportório deste concerto um verdadeiro standard de jazz: Off minor, de Thelonious Monk. Na altura, Manel foi recrutado pelo guitarrista Serafim Lopes, que queria trabalhar uma série de temas de jazz cantados em português. Ao músico cabia apenas assegurar a escrita de originais, que seriam depois cantados por Nuno Aragão. Tudo ficou depois “em águas de bacalhau”, mas é um desses temas que agora surge resgatado (e na sua voz) para o concerto com a OJM. Como se ao aproximar-se da música orquestral que cresceu a ouvir sobretudo graças à colecção de clássica do pai, Manel Cruz não quisesse deixar nenhum passado de fora.

Sugerir correcção
Comentar