A violência sexual nos tribunais

Como uma sentença polémica nos EUA levou ao primeiro afastamento de um juiz na Califórnia desde 1932.

Não me conheces, mas estiveste dentro de mim e é por isso que estamos aqui hoje.” Foi assim que em tribunal, no dia 2 de Junho de 2016, uma jovem norte-americana começou o seu emocionado e emocionante depoimento dirigindo-se ao criminoso que abusara de si sexualmente e que o júri considerara culpado de três crimes de agressão sexual. Aguardava-se, então, a leitura da sentença que, em princípio, podia ir de dois a 14 anos de prisão.

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Não me conheces, mas estiveste dentro de mim e é por isso que estamos aqui hoje.” Foi assim que em tribunal, no dia 2 de Junho de 2016, uma jovem norte-americana começou o seu emocionado e emocionante depoimento dirigindo-se ao criminoso que abusara de si sexualmente e que o júri considerara culpado de três crimes de agressão sexual. Aguardava-se, então, a leitura da sentença que, em princípio, podia ir de dois a 14 anos de prisão.

Perto da uma hora da madrugada do dia 18 de Janeiro de 2015, dois estudantes suecos que passeavam de bicicleta no campus da Universidade de Stanford tinham-se deparado com uma cena sinistra: atrás de uma lixeira, um jovem atacava uma rapariga, seminua e inconsciente deitada no chão. Tentou fugir mas os jovens suecos não o deixaram. A jovem, que se convencionou chamar Emily Doe, estivera numa festa onde bebera demais e, chamada a polícia, foi levada da lixeira para um hospital, onde foi tratada.

Emily Doe não se recordava de nada do que se passara e o seu agressor era um jovem branco e rico, atleta prestigiado e cheio de futuro, pelo que o julgamento foi de uma enorme violência para Emily, que viu confrontada a sua ausência de memória com uma narrativa perfeitamente articulada do seu agressor, Brock Turner, que chegou ao ponto de invocar o seu consentimento para os actos sexuais que praticara. Mas o júri não tivera dúvidas quanto ao que se passara e declarara-o culpado dos três crimes de agressão sexual numa pessoa inconsciente e intoxicada, com introdução de corpo estranho (os dedos) no corpo e a intenção de violar.

O pai de Brock Turner afirmou em tribunal que não fazia sentido que o seu filho fosse preso “por 20 minutos de acção”; o Ministério Público, pelo seu lado, pediu uma condenação em seis anos de prisão e os serviços sociais prisionais consideraram que, sendo um delinquente primário, a pena não devia exceder os seis meses de prisão.

O juiz Aaron Persky seguiu esta última opinião, considerando que uma pena de prisão teria um “severo impacto” em Brock Turner que, no seu entender, não constituía um risco para terceiros, pelo que condenou Brock Turner a seis meses de prisão, tendo o jovem atleta saído em liberdade após cumprir metade da pena.

A sentença levantou enorme polémica, tanto pela diminuta pena como pelas considerações feitas na mesma, pelo que representava de complacência para com a criminosa actuação do promissor atleta universitário e de menosprezo e desvalorização do sofrimento e humilhação profunda de Emily Doe, cuja identidade nunca foi divulgada publicamente. No seu depoimento em tribunal, em certo momento, Emily Doe referiu que quando, depois de ser examinada e tratada no hospital, foi autorizada a lavar-se, ficou a examinar-se debaixo do chuveiro e decidiu que não queria mais o seu corpo. Estava aterrorizada, não sabia o que tinha estado dentro dele, quem tinha tocado nele e se estava, de alguma forma, contaminada. E acrescentou: “Queria tirar o meu corpo como se fosse um casaco e deixá-lo no hospital com tudo o resto.

Michele Dauber, uma professora da Universidade de Stanford e amiga da família de Emily Doe, face à posição preconceituosa do juiz Aaron Persky em relação às mulheres, decidiu criar um movimento para o destituir – em muitos estados dos EUA, os juízes desses estados (e não os juízes federais) são eleitos e podem, para além de não ser reeleitos, ser destituídos por voto popular.

E, passados dois anos, na passada terça-feira, foi que sucedeu: os eleitores do condado de Santa Clara, na Califórnia, decidiram destituir o juiz Aaron Persky, o primeiro juiz da Califórnia a ser afastado em eleições convocadas para o efeito desde 1932.

A polémica é naturalmente grande: os cidadãos afastarem um juiz pelo teor de uma decisão que, embora considerada injusta, não violou a lei, coloca, segundo muitos juristas, sérias questões quanto à possibilidade de independência dos juízes eleitos, criando o risco de aplicarem, sistematicamente, penas mais severas para não serem afastados. Mas, para além da independência dos juízes, existem, referem os promotores da destituição de Persky, outros valores igualmente relevantes como a responsabilização (accountability), a legitimidade democrática e a confiança pública na Justiça. Problemas do outro lado do Atlântico...