A comida enquanto batota para chegar à gente

O que tornava Bourdain tão especial era o facto de tornar a comida no mecanismo perfeito de socialização que ela é. É por causa disso que vamos ter tantas saudades dele

Danny Moloshok/Reuters
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Nelson é escritor disfarçado de jornalista armado em investigador
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Nelson é escritor disfarçado de jornalista armado em investigador

A notícia caiu como um trovão: sabíamos que era possível, provável até, mas nunca o poderíamos esperar. Anthony Bourdain morreu aos 61 anos, de um aparente suicídio. Quem lhe lia ou ouvia as palavras sabia que muitos eram os demónios que habitavam o chef, escritor e apresentador televisivo, e por isso havia a fé de que, se tudo corresse pelo melhor, a depressão não haveria de vencer. Venceu, ao que parece.

 

Bourdain, ele próprio muito vocal a propósito da saúde mental — da sua e da dos outros —, confessou muitas vezes que a droga era a única escapatória ao sofrimento. A maior droga de todas, a que havia sido mais eficaz? A comida. Em especial, a carne de porco.

 

É pela comida que melhor o conhecemos: não por ter sido um chef brilhante (ainda que tenha contribuído para a construção da imagem que temos do chef rockstar, que grita com todos e não tem regras dentro da cozinha a não ser o respeito pela confecção), mas por nos abrir janelas e portas para mundos gastronómicos outrora longínquos. E fazia-o com uma mestria única, entretendo-nos com histórias de gentes que, de outro modo, não conheceríamos. 

 

A mestria com que Bourdain o fazia explica o seu próprio sucesso: mais de uma dezena de livros publicados, entre os quais o ultra-badalado Kitchen Confidential, dezenas de artigos publicados na The New Yorker, no The New York Times e no LA Times, entre tantos outros, já para não falar das séries A Cook’s Tour, No Reservations, The Layover e a mais recente Parts Unknown, que já ia na 11.ª temporada — décima primeira, caramba!

 

Mal me lembro do primeiro dia em que soube da existência de Bourdain. É possível que tenha acontecido na emissão de um dos episódios de No Reservations, pela mão da SIC Radical. Nós, portugueses, ainda tivemos a sorte de o ver por cá em quatro ocasiões: uma nos Açores, duas no Porto e uma em Lisboa. Mas, para mim, a verdadeira persona de Bourdain revelava-se na escrita. Confesso que foi uma das maiores inspirações na hora em que decidi, eu próprio, escrever um livro sobre chefs  — esta ideia agiganta-se sempre que penso nela: um nova-iorquino que escreve sem saber a quem chega acaba por influenciar a vida de milhares, talvez milhões, de formas que nunca imaginará ou porventura saberá. De certa forma, Bourdain foi um herói para mim, como estou certo de que terá sido para tantos de nós.

 

O que tornava Bourdain tão especial não era o facto de ser cozinheiro — ele próprio, aliás, não se considerava lá grande chef — nem sequer os pratos extravagantemente simples que nos mostrou ao longo de anos e anos de programas televisivos. O que tornava Bourdain tão especial era o facto de tornar a comida no mecanismo perfeito de socialização que ela é; através da gastronomia e das artes alquímicas da culinária, Bourdain mostrava pessoas de carne e osso, sem idolatrias ocas, sem falsas modéstias, sem merdas. A comida era, para Bourdain, um argumento para as grandes histórias, para aquilo que nos faz ser humanos. Creio que seja fundamentalmente por causa disso que vamos ter tantas saudades dele.

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