Voltar a Keynes: pode uma proposta esquecida salvar-nos?

A crise das dívidas soberanas tornou evidentes não só as assimetrias estruturais das economias pertencentes à Zona Euro mas também os defeitos da arquitetura institucional da moeda única, das instituições europeias e do FMI.

“Um estudo da história da opinião é uma preliminar necessária à emancipação da mente” escreveu John Maynard Keynes no livro O fim do laissez-faire (1926). As palavras do economista britânico facilmente entrariam em rota de colisão com a célebre TINA – there is no alternative – que, de tanto repetida, para muitos pareceu verdade. Neste artigo, procurarei demonstrar como uma proposta de Keynes esquecida pela história – o plano Bancor – poderia surgir como alternativa para corrigir os crónicos desequilíbrios externos não só de países como Portugal, Espanha ou Grécia, mas também da Alemanha ou da Holanda.

Antes das dívidas soberanas dos países da periferia dispararem, outro problema tornava-se progressivamente mais evidente: os desequilíbrios comerciais entre diferentes economias. De um lado, os países do sul registavam elevados défices comerciais e, do outro, países do chamado core da Europa tinham enormes excedentes.

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Estes desequilíbrios tornaram-se mais problemáticos após a crise das dívidas públicas. A história é conhecida: num ambiente de limitada liquidez, a Troika (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia) fez empréstimos aos estados do Sul sobre a condição da aplicação de reformas estruturais e, especialmente, medidas de austeridade que visassem equilibrar as contas públicas e a balança corrente nacional. Como é percetível, o peso do ajustamento incidiu quase unicamente sobre os países com contas correntes deficitárias. Os mesmos sofreram, consequentemente, um longo e penoso período de austeridade. Porventura mais importante, seria perceber como é que um desenho institucional diferente poderia (e eventualmente poderá no futuro) criar alternativas de ajustamento. É nesse sentido que importa ressuscitar a proposta de Keynes e perceber a sua relevância.

Lições da História

O acrónimo TINA é muitas vezes associado ao processo de ajustamento defendido por instituições como o FMI. Não obstante, se regressarmos ao pós-Segunda Guerra Mundial, facilmente compreendemos que existia alternativa ao desenho institucional do FMI. Na conferência de Bretton Woods, Harry D. White, representando os EUA, e John M. Keynes, em representação da Grã-Bretanha, apresentaram duas propostas distintas. A criação do FMI ficou muito próxima do plano original de White. Em oposição, a proposta de Keynes previa: (i) a fundação de uma International Clearing Union (ICU) que serviria como um Banco Central Global; (ii) a criação de uma moeda de reserva, o Bancor, com taxas de câmbio fixas (mas ajustáveis) a cada moeda, e uma convertibilidade unilateral em ouro garantida; (iii) a penalização através de impostos sobre desequilíbrios excessivos da balança corrente. Se o ajustamento para os países deficitários era similar ao do FMI em substância (desvalorização monetária e interna para ganhar competitividade) não o era em grau devido ao ajustamento que também os países com superavits deviam fazer. Para evitar ver as suas reservas taxadas, os países excendentários para além de reapreciarem a sua moeda, tinham um incentivo para fazer políticas de estímulo fiscal acompanhados de empréstimos e investimento nos países deficitários. Como resultado criava-se um ambiente em que a procura internacional aumentava, tornando mais fácil o reajustamento dos países deficitários.

Um plano Bancor para a zona Euro?

Se a fig.1, ao expressar a balança corrente em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB), nos dá uma ideia preliminar do problema da crise das contas correntes, a fig.2 mostra-nos que, em termos absolutos, a situação é bem mais dramática. Quando representamos as várias balanças correntes em Euros e em valor absoluto, concluímos que não só o excedente da Alemanha aumentou significativamente durante a crise como é superior à totalidade do Produto Interno Bruto de Portugal ou da Grécia (nenhum dos PIB’s excede os 200 mil milhões de euros). Mais, os superavits de um só país foram muito maiores que a soma dos défices do sul. Assim sendo, parece evidente a necessidade de um ajustamento mais simétrico. Mas o que fazer?

Parte da arquitetura da Zona Euro poderia servir de base a um plano inspirado na proposta de Keynes. Mais do que uma moeda de reserva comum, temos uma só moeda em circulação (o Euro). Assim sendo, e porque não existe espaço para política monetária, o sistema seria ainda mais estável do que o previsto pelo economista britânico (existiria um trade off face ao nível de flexibilidade). Não tendo um banco global, temos um banco central (o BCE). E ainda que necessitasse de rever o seu mandato, que prioriza a estabilidade de preços, é uma instituição já estabelecida que pode ser devidamente adaptada. Por fim, recomendaria a criação de um Fundo Monetário Europeu que, para além de servir de credor de último recurso e de intermediário financeiro, devia ter autoridade para impor impostos (que podiam ser convertidos em, por exemplo, contribuições para o orçamento da UE).

A crise das dívidas soberanas tornou evidentes não só as assimetrias estruturais das economias pertencentes à Zona Euro mas também os defeitos da arquitetura institucional da moeda única, das instituições europeias e do FMI. É neste contexto que urge discutir uma reforma institucional na Área Euro. A proposta de Keynes, mesmo que não dê garantias de salvação da Zona Euro, pelo menos salva-nos do vaticínio da TINA. Mostra-nos que existem alternativas e, por mais longínqua seja a sua ideia, não deve ser negligenciada. Afinal, como Keynes ilustremente escreveu, as “ideias moldam o curso da história”. 

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Bibliografia

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