Em nome do Father, da Lorde e do espírito santo, o Primavera escapou à chuva

Afinal, contra todas as previsões, não choveu. Aleluia. Foi também por isso uma excelente noite de arranque do festival, com bons concertos de Father John Misty, Lorde ou Tyler, The Creator.

Foto
Lorde, um caso de pop de massas no Primavera Sound PAULO PIMENTA

E não choveu. Não sabemos de quem foram as preces, se em nome do pai, do filho ou do espírito santo, mas funcionaram. As previsões eram claras: o primeiro dia do festival Nos Primavera Sound iria ser marcado pelas condições atmosféricas adversas. A meia hora do arranque, na tarde de quinta-feira, o pensamento de todos estava no impermeável a usar. Mas não foi necessário. Às 17h30 a chuva parou, o frio amainou, o Inverno foi-se e o Primavera do Porto pode finalmente irromper sem questões paralelas à música, aos concertos, à sociabilização, ao deambular tranquilamente de palco em palco.

Primeira constatação. O recinto está diferente, e há boas e más notícias. As boas notícias são que nada de essencial se transformou. O palco Seat ganhou uma nova centralidade, contornado por bancadas, numa lógica de auditório gigante ao ar livre. A zona Primavera Bits, dedicada à música de dança, é agora assumidamente um espaço interior, como um verdadeiro clube. E as áreas de alimentação foram reforçadas em nome do conforto. As más notícias são que as marcas e as suas estratégias de entretenimento, que até aqui tinham tido uma presença discreta no recinto, fazem-se agora sentir como em qualquer outro festival de Verão, diluindo aquela que era uma das marcas identitárias do Primavera. O ambiente, esse, continua como desde a primeira edição: uma mescla de público internacional e de público português, que deambula com fluidez pelos palcos. O espaço, de resto, resistiu bem à chuva intensa que se fez sentir todo o dia.

Quanto à música, a primeira noite valeu essencialmente pelo concerto irrepreensível de Father John Misty, pela festa de Lorde e pela irreverência de Tyler, The Creator. O americano Josh Tillman, ou seja Father John Misty, pode ser um diletante que gosta de ironizar sobre si e sobre o mundo que o rodeia, mas em palco é apenas um músico interessado em expor as suas canções com grande eficácia. E a verdade é que o consegue. Liderados pelo seu carisma, uma dezena de músicos barbudos e dotados, extremamente oleados, sabendo o que fazer com precisão milimétrica, trazem-nos canções folk-rock que ora são desnudadas e confessionais, ora espelham grandes narrativas sobre a existência contendo algo de grandioso, com uma secção de metais em evidência. Não perdem muito tempo em delongas com o público, existe apenas o desejo de viver aquelas canções.

Foto
Father John Misty deu um concerto entre a ironia e a entrega total PAULO PIMENTA

A primeira meia hora é assim, atravessando temas do passado recente, como Chateau lobby #4 (In C for Two Virgins) ou Total entertainment forever. Só depois se entra no novo álbum, God’s Favorite Customer, sempre com Father John Misty concentrado nas canções, sem interacções com a assistência. É verdade que nas imagens que vão sendo projectadas por vezes se toma contacto com a sua ironia – na interpretação de Mr Tillman, o novo disco é publicitado em registo comercial piroso –, mas há sobretudo sobriedade. Essa contenção acaba por dar lugar a uma segunda metade mais abrasiva, em que a personalidade do músico surge mais paradoxal, capaz de num instante cantar pianíssimo para logo de seguida se entregar com a sua banda a um momento de grande desvario sónico e vocal. Em Hangout at the gallows, Pure comedy ou I love you honeybear, temos acesso a um Misty mais físico, que se contorce em palco com humor mas também com uma honestidade brutal, terminando tudo em euforia com The ideal husband, num concerto imaculado sempre em crescendo.

Casos singulares

A seguir, noutra ponta do recinto, começava o concerto de Lorde. Conotada com a pop de massas, a cantora neozelandesa poderia parecer desenquadrada no Primavera. E é verdade que é um corpo estranho. A sua postura perante o público (às vezes parece forçar a empatia, com demasiadas referências ao Porto e ao diálogo místico com a assistência) e a forma como expõe a música, não se percebendo por vezes com exactidão o que está a ser mesmo tocado, podem gerar resistências junto de um público mais clássico, mas por outro lado é inegável que tem um naipe de canções pop electrónicas com a dose certa de familiaridade e singularidade, não surpreendendo, por exemplo, que tenhamos visto a sueca Fever Ray a assistir ao concerto de Lorde com deleite.  

Há quatro anos – como ela própria lembrou, quando “tinha apenas 17 anos” – apresentou-se no Rock In Rio, em Lisboa de forma despojada, e triunfou. Esta quinta-feira, com mais aparato cénico, acompanhada por três músicos e seis bailarinos, mas ainda assim longe de grandiosidades, voltou a conquistar. As letras das suas canções são propensas a gerar fenómenos de identificação com um público mais juvenil, expondo os dramas da adolescência, abordando as sociabilidades, os romances e as dores de crescimento, mas nada disso surtiria efeito se não existisse som à altura. E a verdade é que a música que criou em dois álbuns é estimulante, seja quando há momentos de enlevo intimista como na balada Liability ou em The louvre, seja quando opta por ritmos quebrados mais próximos do R&B como em Team ou Sober; seja quando discorre por uma pop soturna de arranjos nada ostensivos como em Royals ou Tennis court, seja quando se aproxima mais da euforia electrónica como em Supercut ou Green light, com toda a gente em delírio.

Em todas essas cambiantes Lorde sente-se à vontade, movimentando-se em palco com desenvoltura, nuns casos para traçar quadros de introspecção, noutros para incentivar a celebração colectiva. Às tantas, já depois de ter descido ao público e de ter dito por mais de uma vez que “há muito que não tinha uma recepção assim”, discorreu sobre essa sensação de escrever canções no seu quarto na Nova Zelândia, muitas vezes motivadas por uma profunda “solidão”, e de as ver depois apropriadas por plateias de todo o mundo, como aconteceu no Porto, onde voltou a mostrar que é um caso singular na pop de massas actual.

Como o rapper americano Tyler, The Creator, o é para o universo do hip-hop. Domina todos os códigos do género, quer na forma como convida à participação do público, quer no modo como prevalece no cenário sozinho – a acompanhá-lo, discretos, a um canto, apenas um DJ e dois declamadores que só a espaços intervêm –, mas ao mesmo tempo entrega-se à subversão desses mesmos rituais. Dança, contorce-se, ri-se, é provocador (agradece com “gracias”, sabendo que vai gerar reacções), deita-se, e tanto aborda o amor como o caos das ruas, transformando o palco numa casa que partilha com os amigos.

Foto
Tyler, The Creator, um provocador na sua estreia em Portugal PAULO PIMENTA

Parte do apelo é esse. A sua figura, a atitude, a roupa fluorescente, a forma como se movimenta e o seu lado desbocado – apesar de tudo muito mais controlado do que nos primeiros tempos. Mas depois há o som, os subgraves, as mudanças de intensidade rítmicas, as quebras, o jogo entre som e palavras, uma grande esquizofrenia sónica, e esse é verdadeiramente o lado mais interessante de Tyler, The Creator, apesar de nem sempre ser o mais reconhecido, porque a palavra jocosa acaba por dominar, esquecendo-se por vezes o produtor que procura quase sempre soluções sónicas nada óbvias, como se constatou em Glitter, Who dat boy ou I aint’ got time. E o público, principalmente o das filas mais próximas do palco, rejubilou com a oportunidade de o ouvir numa boa estreia em Portugal.  

Depois de Tyler ainda houve oportunidade para se ouvir o inglês Jamie xx, no papel de DJ, e não com o seu projecto a solo, como alguns pensavam, ou os Motor City Drum Ensemble, num primeiro dia que acabou em dança. Aliás a abertura, pelas 17h30, também foi bastante física, com o funaná dos portugueses Fogo Fogo, enquanto num outro palco deambularam os londrinos Foreign Poetry, que irão lançar um mais do que prometedor álbum de estreia pela portuguesa Pataca Discos. O canadiano Rhye, com o seu colectivo de músicos, para mais uma sessão de sonoridades soul-pop tranquilas, o rock com traços de pós-punk dos Twilight Sad, ou a festa dançante que o português Moullinex é sempre ao vivo foram outros nomes que se destacaram num primeiro dia em que, contra todas as previsões, não choveu. Aleluia. Esta sexta-feira haverá The Breeders, A$ap Rocky, Amen Dunes, Grizzly Bear, Ibeyi, Unknown Mortal Orchestra, Superorganism, Thundercat, Vince Staples ou Fever Ray.

Sugerir correcção
Comentar