A cidade ocupada

Encher as ruas e as praças e gritar “Basta!” é só o princípio da tomada de posse dos espaços das nossas vidas, em paralelo com a visibilização das nossas lutas

Jon Nazca/Reuters
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Jon Nazca/Reuters
Arquitecta, investigadora, feminista, professora, activista e mãe (não necessariamente por esta ordem)
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Arquitecta, investigadora, feminista, professora, activista e mãe (não necessariamente por esta ordem)

A 8 de Março passado, as mulheres espanholas saíram massivamente à rua. Muitas foram as cidades que se encheram de vozes e corpos em luta. A tomada de posse do Dia Internacional da(s) Mulher(es) e a ocupação das cidades pela luta é muito mais do que simbólica e reduzível a esse 8 de Março de 2018. Acompanhando uma greve laboral e o trabalho doméstico e de cuidados, as companheiras espanholas saíram às ruas e reclamaram a exigência e a urgência das mudanças estruturais que tardam em acontecer. Gritaram muitos “basta!”. Disseram basta às “agressões, humilhações, marginalizações e exclusões”. Mas também disseram basta ao que são as “violências machistas, quotidianas e invisibilizadas” como delimitadoras da existência das mulheres enquanto cidadãs efectivas e completas.

O que me interessa aqui sublinhar é a condição espacial destas lutas. A tomada de ruas e praças força à reconfiguração da vida das cidades. Os espaços públicos passam de opressores a palcos onde corpos, vozes e palavras combatem de modo expressivo as opressões. É a conquista do espaço do que é comum, no sentido de ser também colectivo. É a conquista dos espaços públicos das cidades contra o que o patriarcado neles normalizou: a violência, a opressão e a invizibilização de quem, por se encontrar fora das esferas do poder efectivo, se usa, se minoriza e se objectualiza sistemática e paulatinamente. As forças são desiguais e não se equilibrarão sem que exijamos mudanças.

Não é menor que no seu manifesto as mulheres espanholas gritem: "¡Mujeres libres, en territorios libres!" Estes territórios livres de que falam são fundamentais. Não existe a possibilidade de concretização de vidas de direitos e oportunidades efectivas se os espaços dos nossos quotidianos — privados ou públicos — não forem nossos de modo concreto e total.

A estrutura patriarcal em que vivemos continua a colocar as mulheres no espaço da casa, da família, do que é privado e se encontra longe do olhar exterior. É neste sítio dito protector que, ano após ano, são violentadas e assassinadas as que, de algum modo, fazem frente aos homens da sua intimidade ou ex-intimidade. Menosprezam-se estas violências numa cultura que continua a culpar os comportamentos das mulheres vítimas e a justificar o dos homens agressores.

No espaço público não difere muito. Só muda, na maior parte das vezes, a condição de quem agride. O agressor transforma-se em anónimo, múltiplo e diverso. A violência é omnipresente e omnipotente: pode ser levada a cabo por qualquer um, em qualquer lugar, a qualquer hora. Mais uma vez, elas são potencialmente culpadas e eles são quase sempre desculpabilizados.

Encher as ruas e as praças e gritar “Basta!” é só o princípio da tomada de posse dos espaços das nossas vidas, em paralelo com a visibilização das nossas lutas. As cidades ocupadas pelas mulheres espanholas em luta são a indicação de um dos caminhos. Porque a cidade será nossa ou não será. Porque nada nos será entregue se não lutarmos, mesmo que falemos do óbvio, como os nossos mais fundamentais direitos.

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