Os europeístas equivocados

É preciso lembrar que a Europa é o resultado da escolha dos seus povos e não o produto de um vanguardismo estatuído pelas suas diversas elites.

1. Há uma espécie de inimigos da União Europeia que se distinguem por uma característica bastante peculiar: declaram-lhe um incomensurável amor em abstracto e atacam-na em quase tudo o que são as suas manifestações concretas. Habitualmente, começam por invocar uma pretérita “idade do ouro” europeia, época sublime marcada pela ausência de egoísmos nacionais, de tentações dirigistas por parte dos países dotados de maior poder económico, de preconceitos de qualquer espécie no relacionamento entre os diversos povos do velho Continente. Ter-se-ia vivido então num Éden de solidariedade, de generosidade, de verdadeiro espírito supranacional. A esse tempo primordial sucede agora uma época de trevas identificada com o ressurgimento dos directórios, com a falência da noção de fraternidade e com a queda abrupta dos ideais europeus. A par desta descrição de uma progressiva dissolução temporal do projecto europeu, tais criaturas empenham-se também em opor a perfídia que descortinam na actual União Europeia às legítimas aspirações e anseios de povos que, sentindo--se incompreendidos, desatam a votar em partidos extremistas, quando não mesmo xenófobos e racistas. Para os seguidores desta posição pueril todo o mal que descortinam no espaço político europeu radica na “decadência” da União Europeia e na sua incapacidade de responder às expectativas das suas pobres vítimas, precisamente os cidadãos dos vários Estados-Membros.

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1. Há uma espécie de inimigos da União Europeia que se distinguem por uma característica bastante peculiar: declaram-lhe um incomensurável amor em abstracto e atacam-na em quase tudo o que são as suas manifestações concretas. Habitualmente, começam por invocar uma pretérita “idade do ouro” europeia, época sublime marcada pela ausência de egoísmos nacionais, de tentações dirigistas por parte dos países dotados de maior poder económico, de preconceitos de qualquer espécie no relacionamento entre os diversos povos do velho Continente. Ter-se-ia vivido então num Éden de solidariedade, de generosidade, de verdadeiro espírito supranacional. A esse tempo primordial sucede agora uma época de trevas identificada com o ressurgimento dos directórios, com a falência da noção de fraternidade e com a queda abrupta dos ideais europeus. A par desta descrição de uma progressiva dissolução temporal do projecto europeu, tais criaturas empenham-se também em opor a perfídia que descortinam na actual União Europeia às legítimas aspirações e anseios de povos que, sentindo--se incompreendidos, desatam a votar em partidos extremistas, quando não mesmo xenófobos e racistas. Para os seguidores desta posição pueril todo o mal que descortinam no espaço político europeu radica na “decadência” da União Europeia e na sua incapacidade de responder às expectativas das suas pobres vítimas, precisamente os cidadãos dos vários Estados-Membros.

Esta análise incorre num erro de avaliação crasso: sendo a União Europeia constituída e dirigida no essencial por Estados assentes num modelo de organização democrática, ela é em cada instante o produto da escolha livre dos cidadãos que a integram. Ocupemo-nos de um caso muito concreto e que tem sido vastamente utilizado nos últimos dias devido a tudo quanto se está a passar em Itália. Várias boas almas têm escrito que o resultado das eleições italianas decorre da incapacidade da União Europeia ter atempadamente concebido e aplicado uma política mais eficaz para enfrentar o problema da imigração. À primeira vista esta afirmação parece razoável e talvez por isso seja profusamente replicada por tudo quanto é cão e gato no comentário político português. Só que é preciso fazer uma análise mais profunda e, já agora, mais séria. Façamos um esforço de decomposição da questão: a União Europeia não constitui uma realidade absolutamente unívoca e dotada de um comando único; pelo contrário, contém vários níveis e diferentes instâncias de decisão. No tema específico das migrações, a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu adoptaram posições que não suscitaram o respaldo de um Conselho Europeu dividido entre países disponíveis para a promoção de uma política generosa de acolhimento de imigrantes e países completamente hostis a essa mesma orientação. Ocorre que todos esses governos assentam em maiorias parlamentares e refletem opções nacionais democraticamente legitimadas. Não faz, por isso, qualquer sentido atribuir a responsabilidade pelo que se tem vindo a passar a uma vaga e indeterminada noção de Europa, como se existisse um centro de decisão, provavelmente sediado em Bruxelas, incapaz de perceber e atender de forma solícita à premência de uma situação reconhecidamente complexa. É preciso lembrar que a Europa é o resultado da escolha dos seus povos e não o produto de um vanguardismo estatuído pelas suas diversas elites.

Por outro lado, e voltando ao caso italiano, também se revela pouco rigorosa a tese de que os pobres cidadãos são vítimas das nefastas políticas produzidas a partir da pérfida e decadente Bruxelas. Desde há muitos anos, muito antes do surgimento do actual fluxo migratório, tem-se assistido ao crescimento eleitoral naquele país de posições políticas de carácter xenófobo e racista que começaram por opor os italianos do Norte aos transalpinos do Sul. Lembremo-nos do que foi a inesperada aparição eleitoral da Liga Norte de Umberto Bossi há duas décadas e do que já então representava o telepopulismo encarnado por Sílvio Berlusconi. Nessa altura não havia austeridade, não havia imigrantes e contudo já se notava uma propensão popular para apoiar soluções muito parecidas com aquelas que hoje prevalecem.

É muito fácil encontrar bodes expiatórios e explicações simplistas quando as coisas correm mal. Nos últimos tempos, a preguiça mental de grande parte da esquerda levou-a a atribuir a responsabilidade por tudo o que de menos bom ocorre no espaço europeu à austeridade; essa mesma preguiça mental conduziu a direita à elaboração do argumento de que na raiz dos males europeus estava a perda de importância dos Estados-nação. Uma e outra teoria relevam sobretudo de uma abordagem preconceituosa que tem pouco em conta a realidade. A aproximação das eleições para o Parlamento Europeu poderá levar, infelizmente, a um recrudescimento do discurso simplista, maniqueísta e ilusório. Já há alguns sinais nesse sentido. Sinais esses que são particularmente deploráveis quando provêm de mentes reconhecidamente superiores mas moralmente propensas à prática da demagogia; apesar de tudo são mais desculpáveis nos espíritos que porventura acreditam mesmo naquilo que escrevem e dizem. Oxalá eu esteja enganado.

2. Sou um leitor atento do Observador, jornal digital de inegável qualidade. A circunstância de ter uma linha editorial claramente identificada, que não corresponde, como é óbvio, às minhas opções doutrinárias e políticas, não me causa qualquer tipo de urticária. Aprecio, apesar de discordar na maior parte das vezes, a qualidade dos seus principais colunistas. Há, porém, um dado curioso que fui verificando ao longo dos últimos meses: uma parte significativa desses colunistas, sobretudo aqueles que podemos identificar como uma certa classe média intelectual, não esconde dois sentimentos básicos: a profunda tristeza pelo facto do PSD, sob a liderança de Rui Rio, se recusar a seguir uma linha de orientação neoconservadora ou neoliberal e a alegria, só aparentemente estranha, com que saúdam os presumíveis avanços dos sectores que eles próprios consideram como correspondentes à ala esquerda do PS. É caso para dizer, embora seja agnóstico, que Deus me livre de cair nas boas graças de alguns dos colunistas do Observador.