Merkel quer fazer da Europa um actor global. Em todas as dimensões

Segurança, segurança, segurança. A chanceler dá prioridade a uma dimensão em que o seu país ainda é relutante. Pela razão simples de que o mundo deixou de ser o mesmo. Depois, vêm as migrações, a ciência e a inovação.

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Ou a Europa muda ou tornar-se-á irrelevante, disse Merkel CLEMENS BILAN/EPA

Qual foi a palavra mais repetida na intervenção, clara e firme, de Angela Merkel no primeiro dia das jornadas do Partido Popular Europeu (<_u13a_stockticker _u23a_st="on">PPE), a decorrer em Munique? A resposta é “segurança”. Percebe-se porquê, mesmo vinda da chanceler de um país sempre relutante em colocar as questões de segurança e de defesa no cimo das suas prioridades.

A chanceler explicou que a Europa ainda não se deu totalmente conta de que o mundo mudou de tal maneira que ou ela própria muda ou será irrelevante. Que a Europa está hoje, mais do que nunca desde a II Guerra, por sua conta. Sem o dizer abertamente, a mensagem é óbvia: Trump é um problema e a Rússia uma ameaça.

Apresentou uma lista do que é mais urgente fazer, a começar pela força de reacção rápida defendida pelo Presidente francês, que possa agir na vizinhança europeia, toda ela em chamas. Mas também a compatibilização dos sistemas de armamentos, hoje dispersos, afectando gravemente a eficácia militar da Europa.

Para isso é preciso desenvolver uma “cultura estratégica” comum, que passa pela definição dos interesses comuns dos Estados-membros da União Europeia. Como sempre, a chanceler frisou que esta capacidade autónoma só faz sentido no quadro da Aliança Atlântica. A segurança é também o combate ao terrorismo, outra área em que a cooperação europeia é fundamental, incluindo com o Reino Unido e os EUA. Um longo caminho e uma batalha a vencer na sua própria opinião pública.

A segunda prioridade da chanceler também não oferece grandes dúvidas. São as migrações. A Europa não pode voltar a enfrentar um crise de refugiados como a que aconteceu a partir de 2015. Mas, se não conseguirmos uma resposta comum” é a própria União que “estará em causa”.

As suas propostas são conhecidas. O reforço do Frontex, a agência responsável pela fronteira externa. Os países de Leste torcem o nariz, porque não querem nada em comum neste domínio. E, mais importante ainda, mesmo que mais difícil, a reforma das leis do asilo, para que quem procura refúgio na Europa não escolha apenas os países onde a lei é mais favorável. Na base do problema está a questão da distribuição, até agora irresolúvel, graças à oposição de uma série de países, sobretudo os do Leste e Centro da Europa. Ou de outros, que vão arrastando os pés. É um problema que vai manter-se no longo prazo e é nessa perspectiva que deve ser resolvido. Por isso, nas suas palavras, é preciso um verdadeiro “Plano Marshall” para os países de onde partem os imigrantes e os refugiados. Outra prioridade que custará dinheiro e que não será resolvida sem uma “cultura de solidariedade”.

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A questão dos imigrantes e refugiados é um dos grandes desafios da UE Alkis Konstantinidis/REUTERS

Segue-se a inovação tecnológica, onde a Europa está muito longe dos EUA. Quer uma agência europeia para “promover a inovação disruptiva”. Os seus argumentos, no discurso e fora dele, não poderiam ser mais realistas. A Europa tem um enorme défice em relação aos EUA. Mesmo que investisse quantidades enormes de dinheiro daqui a  dez anos continuaria atrás. Basta olhar para quais são hoje as dez maiores empresas alemãs, para verificar que nove delas já existiam antes da II Guerra. Nos Estados Unidos, basta recuar a 2000 para verificar que das dez maiores empresas, nove não existiam nessa data. É lá que acontecem todas as inovações “disruptivas”, ou seja, as que fazem mudar a sociedade e a economia. A Europa tem de ser capaz de fazer melhor. “Não precisamos de empregos, precisamos de qualificações”, foi a resposta directa que deu a uma das perguntas sobre a criação de emprego.

Merkel não fugiu ao problema das identidades e das “culturas” que hoje alimentam os populismos e os extremismos. Nunca mencionou a Itália. Disse que não podem ser ignoradas.  É preciso respeitá-las e ajudar a que se abram aos outros, em vez de se fecharem sobre si próprias. Este foi um tema comum a muitas intervenções, mas não numa abordagem tão aberta como a da chanceler, pelo contrário. Mantêm-se uma atitude “defensiva” que insiste na “cultura” e no modo de vida europeu, que os outros terão de aceitar. Aliás, as jornadas do PPE decorrem num Land alemão em que o ministro-presidente, da CSU, mandou colocar cruzes em todos os edifícios públicos, talvez menos por convicção mas porque sabe que isso agrada ao eleitorado e vai enfrentar eleições.

A chanceler não dedicou mais do que meia dúzia de palavras à quarta prioridade: a reforma da zona euro. Admitiu apenas que deve ter uma capacidade orçamental, que só deverá ser adoptada depois de concluídas as negociações do próximo orçamento plurianual, que quer ver aprovado até às eleições europeias de 2019.

Outra dimensão importante da sua intervenção tem a ver com o equilíbrio de poderes entre as instituições europeias. Não vale a pena andarmos a debater a “intergovernamentalidade” ou o “método comunitário”: quem decide na Europa são os governos, e não a Comissão ou o PE, frisou. O poder está no Conselho Europeu e é aí que deve continuar a estar.

Foi ainda mais longe ao defender que as decisões em matéria de política externa e de segurança e defesa têm de ser tomadas por maioria qualificada e não por unanimidade, sob pena de serem ineficazes. A Comissão, tal como previsto no Tratado de Lisboa, tem de passar a ter menos comissários do que Estados-membros, com uma rotação igual para grandes e pequenos. É por isso que Merkel não quer oque o PPE quer: que cada grupo parlamentar apresente ao eleitorado o seu candidato a presidente da Comissão, como nas eleições passadas.

A Europa como actor global é a força motriz das propostas da chanceler. Capaz de defender os seus interesses num mundo que lhe é hoje muito mais adverso. As suas últimas palavras foram para lembrar que a Alemanha sozinha pode muito pouco face à China ou qualquer grande desafio internacional. É também nesse sentido que vai a sua proposta para o Conselho de Segurança da ONU, agora que um dos seus dois membros permanentes europeus, o Reino Unido, vai sair da UE. A única forma de a UE ter um lugar permanente” é que os seus membros (pelo menos uns dez) que concorrem ciclicamente para lugares não permanentes funcionem em nome da União.

Feitas as contas às palavras da chanceler e, ainda mais, a outras intervenções de líderes bastante menos europeístas, percebe-se que as prioridades europeias são cada vez mais as prioridades da Europa mais rica. A convergência não foi uma palavra muito ouvida em Munique. 

A jornalista viajou a convite do PPE

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