E cá estamos nós de volta a Olivença

O Dia de Camões volta a ser celebrado em Olivença, única parcela na Península Ibérica que se mantém, até hoje, uma mescla de duas nações.

Pelo terceiro ano consecutivo, o 10 de Junho português vai ser celebrado em Olivença. Em paz e na única parcela na Península Ibérica que se mantém, até hoje, uma mescla de duas nações: espanhola na posse, portuguesa na lei. A contenda é antiga, bem antiga, e dela se vem dando nota, anos após anos, permanecendo tudo numa tácita modorra: nem Portugal insiste na lei, nem Espanha faz o mínimo sinal de devolução. Ficamos assim, no meio de tudo isto, em festa. Convivendo alegremente, cruzando culturas e falas, num território a que nestas crónicas já se chamou “Espanhugal”, tal o seu estado híbrido.

O mais curioso é que o Dia de Camões e das Comunidades Portuguesas coincide, por caprichos de calendário, com o dia em que a Coroa Espanhola assinou o Tratado de Viena em que se comprometeu a devolver Olivença a Portugal: 10 de Junho de 1817. Não o fez, já todos o sabemos (Olivença foi ficando Olivenza), e a isso Portugal foi respondendo, esparsamente, com alguns resmungos e protestos tímidos, para que não pensassem que alguém oficialmente se esquecera do assunto. Mas sem consequências. A ancestral história da vila é, também ela, a de um estranho pingue-pongue ibérico. Olivença pendeu primeiro para o lado de Castela na Convenção de Badajoz (1267) e depois para Portugal no Tratado de Alcanizes (1297). Em 1657, os espanhóis voltaram a tê-la nas mãos, por assalto militar, acabando por devolvê-la em 1668, então por via do Tratado de Lisboa. Em 1801, porém, a Espanha contra-atacou e voltou a ter Olivença sob seu domínio. E Portugal foi forçado a assinar o Tratado de Badajoz, reconhecendo à Coroa espanhola a oportunidade de conservar “em qualidade de conquista para a unir perpetuamente aos seus domínios e vassalos a Praça de Olivença, seu território e povos desde o Guadiana; de sorte que este rio seja o limite dos respectivos Reinos, naquela parte que unicamente toca ao sobredito território de Olivença.” Com uma condição: o tratado seria anulado se alguém o violasse. O que sucedeu em 1807 com o Tratado de Fontainebleau (onde Napoleão e a Coroa espanhola planearam dividir Portugal em três fatias, a administrar entre ambos) e com as invasões francesas, levando a que a D. João VI, já no Brasil, declarasse em 1808 nulo e sem nenhum efeito o Tratado de Badajoz.

O que se seguiu, na História, favoreceu Portugal. O Tratado de Paris de 1914 declarou nulos e sem valor os Tratados de Badajoz e de Madrid de 1801, e o Congresso de Viena de 1815 reconheceu o direito de Portugal à posse de Olivença. Espanha, porém, só mais tarde assinou este tratado, “reconhecendo a justiça das reclamações formuladas por Sua Alteza Real, o Príncipe Regente de Portugal e do Brasil, sobre a vila de Olivença e os outros territórios cedidos à Espanha pelo Tratado de Badajoz de 1801”, prometendo “os seus mais eficazes esforços a fim de que se efectue a retrocessão dos ditos territórios a favor de Portugal”. Quando? “O mais brevemente possível.” Ou seja: até hoje, nunca.

Passaram-se uns módicos dois séculos. O mundo engalfinhou-se em sangrentas guerras, elevando o crime universal a patamares inauditos, ergueu e derrubou ditaduras, sofreu e tentou sarar as feridas, que foram tantas. No meio, a querela oliventina fez-se ouvir com uma intervenção do rei D. Carlos junto do seu homólogo espanhol (reclamando justiça) e com uma tentativa, estancada, de invasão militar portuguesa durante a II Guerra. O que veio depois resumiu-se a tentativas diplomáticas e à afirmação social de presença portuguesa por meio da língua, da história e da cultura. E é desta última que emana a terceira celebração do 10 de Junho em Olivença (ontem, dia 6, nem de propósito, a Cinemateca Portuguesa exibiu o documentário Te Entiendo, de Vítor Hugo Costa, sobre o “estado de dicotomia” oliventino). E lá teremos, como no ano passado, a cerimónia (onde não faltará o “alcalde” Manuel J. González Andrade, do PSOE), conferências e actuações musicais, a partir das 11h30 (10h30 portuguesas). Os que se vêm batendo pelo direito à memória portuguesa em Olivença, como a Associação Além-Guadiana ou, em termos pessoais, Carlos Luna ou José Ribeiro e Castro, estão assim de parabéns: o terceiro 10 de Junho oliventino é obra deles, numa terra tacitamente sem fronteiras.

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