Uma geração sem saída num festival em busca de “experiências-limite”

Retrato de um casal na casa dos 30, incapaz de decidir que caminho seguir na vida, Pulmões tem esta quinta-feira a sua estreia absoluta em Guimarães, abrindo a 31.ª edição dos Festivais Gil Vicente. Até 16 de Junho, seis espectáculos procuram explorar os temas que marcam a sociedade de hoje.

Guimarães
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Pulmões, de Duncan MacMillan, abre o festival DR
Gil Vicente, Centro Cultural Vila Flor, Braga, Vila Nova de Famalicão, Terras de Bouro
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Casimiro e Carolina, de Ödön von Horváth, na encenação de Tonán Quito FILIPE FERREIRA
Centro Cultural Vila Flor, Música
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Se eu vivesse, tu morrias, de Miguel Castro Caldas VITORINO CORAGEM

Um casal discute, numa ida ao Ikea, a hipótese de ter um filho. Começa assim o desmoronar de uma relação. Entretanto, lá fora, tudo colapsa. “O que vemos tem uma aparência normal, mas se, em vez de nos focarmos nas personagens, nos focarmos nas janelas da casa, vemos o mundo a acabar”, diz Luís Araújo, encenador e actor de Pulmões, a peça de Duncan MacMillan que esta noite sobe ao palco do Pequeno Auditório do Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, abrindo a 31.ª edição dos Festivais Gil Vicente.

O casal vive num “espaço escheriano, circular, onde uma pessoa, por muito que tente fugir, vai sempre dar ao mesmo sítio”. Esse espaço, que esta produção do Cabo Teatro procura verter na cenografia, evoca uma realidade irrespirável, ao contrário do que o título da obra sugere. Mas Pulmões não é um título irónico. “Representa a vontade de respirar numa casa a arder”, nota Luís Araújo.

A tendência para a ironia ("Para nos podermos relacionar com as coisas, o nosso primeiro passo é sempre tentar perceber se são irónicas") é, para o encenador, um sinal do peso da pós-modernidade sobre a sua geração. Mas neste palco as duas pessoas discutem a vida de “forma muito concreta”, procurando dissecar a situação para decidir qual o próximo passo a dar: “Não é à toa que a peça começa simbolicamente no Ikea. Estamos habituados a ter manuais de instruções para tudo."

Pulmões sintetiza a identidade da geração dos 30, até pela forma como as personagens rejeitam a emoção quando se trata de encontrar soluções. “Ao contrário da geração dos meus pais, vamos tudo o que é emoção como fraqueza. Preferimos a ironia, o cinismo, que não ajudam a encontrar pontes. Isto também fere as relações interpessoais”, reitera o encenador. Mas a peça tenta também escapar-se desse peso, ao privilegiar a interacção entre duas pessoas, ao invés de deambular pela autoconsciência e pela autocrítica.

Geracional não só nas relações entre pessoas, mas também na relação delas com o mundo, para Luís Araújo Pulmões não é um manifesto ecológico, mas deixa à tona a incerteza que paira sobre o futuro do planeta. No fundo, fala de medo, tema que já marcara algumas das suas criações anteriores. Um medo que deriva do “stress e da ansiedade perpétuos” em que a geração dos 30 está mergulhada e que invade não só o palco, mas também o processo de criação e os próprios ensaios. Ao longo de um mês de trabalho, Luís Araújo teve de assumir as peles de encenador e de actor. O resto da equipa teve de se desdobrar também entre este espectáculo e outros projectos. “É tudo em processo acelerado. É um espectáculo-espelho da minha geração: uma geração cansada, que põe quatro chapéus ao mesmo tempo, porque tem de os pôr”, resume.

Experiências-limite

Entre os seis espectáculos que compõem a 31.ª edição dos Festivais Gil Vicente, alguns, como Casimiro e Carolina, com encenação de Tonán Quito (dia 14, 21h30), reinterpretam obras do passado, neste caso um texto de Ödön von Horváth, em que as personagens vão à Festa da Cerveja de Munique para se esquecerem dos problemas associados ao desemprego causado pela Grande Depressão; outros seguem caminhos experimentais, como Se eu vivesse, tu morrias (dia 9, 21h30), de Miguel Castro Caldas, peça vencedora do Prémio SPA 2017 para Melhor Teatro Português Representado, e que decorre entre a representação em palco e a leitura do texto, ao dispor do público.

Todos os espectáculos deste ano pretendem, no entanto, olhar através do teatro para a sociedade contemporânea. “É uma edição-limite. Pegámos em peças que propõem uma experiência-limite sobre determinadas matérias”, descreve o director artístico dos Festivais Gil Vicente, Rui Torrinha. O papel interrogatório da arte, acrescenta, é ainda mais relevante quando se atravessam “tempos extremos”, como estes que a cultura tem vivido em Portugal.

Para o programador, mais decisivo do que o financiamento – que recentemente levou o sector a protestar nas ruas – é definir o caminho que o país quer seguir. “A criação é um vector fundamental da nossa identidade. Há uma coisa positiva nisto tudo: pela primeira vez em muito tempo, debate-se o estado da cultura em Portugal, ainda que de forma algo fragmentada”, diz.

Além de Pulmões, Retábulos, peça da companhia-anfitriã, o Teatro Oficina, em que os protagonistas são a cidade e os universos que nela cabem, é a outra estreia absoluta do programa desta edição, subindo ao palco no dia 8. Com um cartaz 100% nacional, os Festivais Gil Vicente encerram, depois, com a criação colectiva Sobre lembrar e esquecer (dia 15) e Perplexos (dia 16). Este ano, o programa inclui ainda uma mostra de projectos de alunos e ex-alunos da licenciatura em Teatro da Universidade do Minho. “Para fixar o conhecimento no território”, explica Torrinha.

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