Salvar o Serviço Nacional de Saúde

Os serviços privados têm que ser suplementares e não complementares do SNS como muitas vezes se diz e sobretudo se faz.

O Dr. António Arnaut deixou-nos um legado simbólico que é uma responsabilidade: salvar o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Diz-nos respeito a todos, mas sobretudo aos que estão no exercício do poder político.

Para salvar o SNS é necessário olhar para duas vertentes: resolver o subfinanciamento crónico e maximalizar a possibilidade de prestação de serviços públicos, baixando o custo da sua compra aos privados. A propósito de subfinanciamento: na penúltima semana de Maio o comissário Dombrovskis, em nome da Comissão Europeia, de que é vice-presidente para o Diálogo Social e o Euro, veio dizer que em Portugal e especificamente para a Saúde, que era o que se estava a discutir no país, se tinha que gastar menos dinheiro. Falou como se nós fossemos uma colónia ou um protectorado! Isto devia ter sido um escândalo nacional. No entanto, no dia seguinte, os jornais faziam título e os telejornais abriam com mais um caso doméstico de somenos importância, que também serviu de abertura à interpelação da direita parlamentar.

Ora, como se sabe, a despesa per capita em saúde foi-se afastando da média europeia a partir de 2011: em 2016 a portuguesa estava em 2423,3 e a europeia em 3549,4 (em dólares, a preços constantes). E a parte a cargo das famílias era em Agosto de 2017 de 27,7% (média da União Europeia – 15,3%). Ainda usando como fonte a conta satélite do INE para a saúde em Agosto de 2017, o peso dos cuidados domiciliários em 2015 era de 0,3% e dos cuidados preventivos 1,1%! O que é que o senhor Dombrovskis sabe disto? Ou sabe demais e acha que os cuidados de saúde se devem simplesmente liberalizar? Para estabelecer uma programação e um planeamento de acordo com as necessidades não se pode partir de um ponto em que já se sabe que o dinheiro vai faltar e em que as instituições ficam de mão estendida para tapar os buracos. Com este procedimento cai-se na navegação de cabotagem e as verbas vão sendo distribuídas de acordo com quem mais grita, com aqueles que têm mais exposição nos jornais e com os casos mais espectaculares que servem os títulos e a política de direita. É a orientação programática de “quem mais chora...”. Não serve para salvar o SNS.

A rede de necessidades de Unidades de Saúde Familiar (USF’s) está estabelecida e as suas aberturas dão benefícios económicos a curto prazo, que já estão estudados. Os cuidados domiciliários a partir dos Centros de Saúde, sobretudo em enfermagem, trazem benefícios económicos imediatos. A demografia dos médicos de acordo com os grupos etários está feita e não se pode fazer ou deixar fazer narrativas em que se fala do número de médicos em bruto, como se um clínico de 60 anos estivesse muito fresquinho para fazer urgências nocturnas. E a verdade é que faz. Também se sabe o número necessário de enfermeiros e assistentes operacionais, como um dos factores para evitar infecções hospitalares, que tão caras nos saem. Apesar disso, depois do aumento de profissionais destas áreas em 2016/17, seguiu-se uma diminuição desde Outubro de 2017: como exemplo, só no Centro Hospitalar Lisboa Norte (H. Santa Maria) havia em Abril de 2018 menos 50 enfermeiros do que em Outubro de 2017 e estima-se que, se forem aplicadas as 35 horas semanais, a 1 de Julho faltará o equivalente a 166 profissionais dessa área. Vai correr mal. Os colégios da especialidade dos médicos têm estabelecido as necessidades de acordo com as regiões. Se as vagas abertas para concurso nas zonas mais interiores ficam desertas, aplique-se o remédio que serve para outras profissões e que é sugerido para empresas – compense-se com mais regalias do que as já existentes ou as actualmente oferecidas, para compensar a distância dos grandes centros urbanos. Isto faz parte da descentralização. Em relação à articulação entre os centros hospitalares e os cuidados primários é possível aumentar muito a sua eficácia com ligação bilateral, como deslocação de especialista hospitalar ao Centro de Saúde ou USF, com comunicação directa. A custo zero.

Ou seja: os dados existem, a programação, o calendário e as metas são possíveis. O que falta é programar... E isso é impossível quando a política é solucionar no dia-a-dia as reclamações, tapar o buraco das dívidas, consertar os equipamentos que já deviam ter sido substituídos, solucionar urgências com compra de serviços externos, vender património para obter liquidez.

Na relação do SNS com os serviços de saúde privados existentes no sistema, a posição tem que ser clara. Os serviços privados têm que ser suplementares e não complementares do SNS como muitas vezes se diz e sobretudo se faz. É uma questão de ângulo e de geometria... Dizer que os privados têm que ser complementares pode significar que o SNS necessita de se complementar com serviços privados e comprá-los, para satisfazer as necessidades da população, o que actualmente acontece. Isto não pode ocorrer num serviço que deve ser universal e gratuito. Se a utilização dos serviços privados for suplementar decerto que haverá sempre quem opte por eles, embora tenha direito ao SNS: por questões de hotelaria, por preferências de proximidade, por escolherem determinado especialista em determinada instituição privada ou simplesmente por terem um seguro que paga esse tipo de serviços. O que não pode ser é o SNS ter de recorrer a compra de serviços privados por não haver resposta no público.

Analisando o fluxo financeiro do SNS nos anos de 2010 a 2015, verifica-se que enquanto o orçamento nos hospitais públicos desceu 664,357 milhões de euros (ME), o destino do dinheiro deu a volta e foram pagos mais de 162,961 milhões aos privados. Ou seja, há aqui vasos comunicantes. E assim não há que espantar que haja 169 hospitais privados com um volume de negócios de 1486 milhões de euros e que o total do sector privado tenha um volume de 5689 milhões de euros. Estas despesas dizem respeito às Parcerias Público-Privadas (PPP’s) mas não só. Os custos com pagamentos do SNS em 2016 a privados para compra de serviços clínicos foram os seguintes, de acordo com o Portal do SNS, Agosto de 2017: 142,876 milhões de euros em análises clínicas feitas no privado, mais 3,887 milhões do que em 2014, em Radiologia mais 2,763 milhões, em fisioterapia mais 5,763, em endoscopias gastroenterológicas mais 16,073 milhões. Em hemodiálise foram pagos a privados 253,420 milhões de euros, mais 2,5% do que no ano anterior. Sempre a subir. Será este o percurso da “complementaridade”? Se assim é vamos a caminho de um sistema liberal no funcionamento, mas que guarda o nome de SNS como símbolo. Quando tendencialmente deveria ser o inverso.

Porque o que se pode perguntar é por que é que as instituições públicas não dão resposta a estas necessidades e têm que comprar serviços no mercado. Os grandes centros hospitalares têm laboratórios de grande qualidade e podem ser abertos postos de colheita nos Centros de Saúde da área. As tentativas do passado mostraram-nos que a Entidade Reguladora de Saúde (ERS) se portou como uma espécie de advogado de defesa dos privados quando o Centro Hospitalar Lisboa Norte e o Centro Hospitalar da Guarda tentaram fazê-lo. Como se a ERS tivesse que ser neutra naquilo que é um dever de defesa dos serviços públicos e dos dinheiros públicos. São estes poderes, tal como a pressão dos privados e as vozes arrogantes da Europa, que o executivo tem que enfrentar.

Ou seja, há quem veja o SNS como uma forma de redistribuição social, pública e de acesso igualitário. Há quem veja o sistema de saúde como mais um mercado de livre concorrência e o SNS como um meio necessário “para os mais desprotegidos” E há os assim-assim. As palavras de circunstância que foram ditas aquando do falecimento de António Arnaut pronunciadas por pessoas da direita parlamentar podem figurar como exemplos de hipocrisia, se forem confrontadas com as votações que foram feitas no Parlamento desde 1979 até agora. Felizmente não as podem apagar.

E quem de forma sincera e activa defende o SNS pode repetir o que António Arnaut disse pelo telefone nas suas últimas horas ao primeiro-ministro: “Ó Costa, vê se salvas o SNS!”

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