O conservador que ajudou os mencheviques

O resultado da transição democrática portuguesa parece normal, quase mesmo inevitável. Mas não foi. Pelo menos em parte, só foi possível graças ao papel de Carlucci.

Segundo a célebre expressão de André Malraux, na revolução portuguesa os mencheviques ganharam aos bolcheviques. O intelectual francês podia acrescentar que para isso muito contribuiu um conservador norte-americano: Frank Carlucci.

Visto com mais de 40 anos de distância, o resultado da transição democrática portuguesa parece normal, quase mesmo inevitável. Mas não foi. Quer por razões internas portuguesas, quer por razões que remetem para a política dos EUA no período. E, pelo menos em parte, só foi possível graças ao papel de Carlucci.

Com fama de ser um “diplomata duro”, com vasta experiência em situações revolucionárias – serviu no Congo, no período da independência desta antiga colónia belga; no Zanzibar, durante a revolução que conduziu à sua unificação na Tanzânia; e no Brasil, na época do golpe militar que derrubou João Goulart – chegou a Portugal em Janeiro de 1975 com uma missão muito clara: derrotar o partido comunista (PCP) e travar a sua revolução.

Foi o que começou a fazer praticamente desde que se instalou na embaixada, apostando nas forças político-militares de esquerda, mas não comunistas, muito em especial o Partido Socialista e Mário Soares, mas também os militares que se opunham ao PCP. Fê-lo, porque percebeu uma realidade elementar da situação portuguesa de então: o 25 de Abril de 1974 não tinha sido apenas um golpe de Estado militar, era acima de tudo uma revolução, e naturalmente de esquerda, depois de mais de quatro décadas de uma ditadura muito à direita.

Fê-lo, mas não foi fácil. Recorde-se que, sobretudo após o 11 de Março de 1975, assistiu-se a uma verdadeira disputa no seio do governo dos Estados Unidos que passou pelo confronto entre duas escolas de pensamento acerca da política a levar a cabo em Portugal.

A primeira, conhecida por “Teoria da Vacina” e defendida por Kissinger, resultou directamente da sua convicção de que Portugal estava perdido para o Ocidente, ou porque se ia tornar num país comunista alinhado com o bloco soviético, ou numa ditadura militar, sob forte influência do PCP, com uma política externa não-alinhada. Partindo desta avaliação e das suas implicações para o futuro da Europa do Sul e para a NATO, sustentou que Lisboa devia ser isolada no seio da Aliança Atlântica, ou mesmo expulsa, de modo a que servisse de “vacina” para o resto da Europa meridional, ou seja, um exemplo a não ser seguido por Itália, França, Espanha e Grécia.

A segunda escola, conhecida por teoria do apoio às forças moderadas e defendida por Carlucci, partia da convicção de que a tomada do poder pelos comunistas era muito pouco provável, desde que os EUA fizessem a coisa certa, ou seja, como já foi referido, se apoiassem as forças políticas e militares internas situadas na esquerda moderada e não comunista e se dessem ajuda económica a Portugal.

Frank Carlucci tinha razão. Henry Kissinger não. De resto, o próprio explicou mais tarde as razões fundamentais para a improbabilidade de uma vitória do PCP em Portugal. Primeiro a geografia: Portugal localizava-se no extremo ocidental da Europa, bem longe da URSS e seus satélites. Segundo a economia: apenas uma percentagem muito pequena do comércio externo português (3 a 5%), era com países comunistas, sendo a larga maioria das suas trocas comerciais feita com a Europa Ocidental. Terceiro a NATO: Portugal era membro fundador da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a sua segurança dependia disso e havia várias ligações entre os militares dos países da Aliança Atlântica e os portugueses. Quarto: havia a estrutura de propriedade privada ao nível agrícola. Quinto: o país era esmagadoramente católico e tinha uma Igreja forte.

Era Carlucci vs. Kissinger. E o primeiro ganhou. Porque tinha uma rede de apoios ao mais alto nível na capital dos Estados Unidos e ele sabia bem, como havia de dizer mais tarde, que “a questão chave para qualquer embaixador não é como lidar com o país anfitrião, mas como lidar com Washington”. Desde logo Caspar Weinberger, Lawrence Eagleburger, Vernon Walters, Alexander Haig e Bill Clements, mas, acima de tudo e todos, Donald Rumsfeld.

A história também é feita de acasos e de sorte. Foi isso que aconteceu no Verão de 1975. Por coincidência, Donald Rumsfeld era nessa data Chief of Staff do Presidente Ford (que, como se sabe, é um lugar com imenso poder na América) e era amigo intimo de Carlucci: tinham sido colegas em Princeton, partilhado o mesmo quarto e lutavam juntos na equipa de Wrestling dessa faculdade. Rumsfeld garantiu a Carlucci uma reunião com o Presidente Ford e isso foi suficiente para Kissinger chamar o embaixador e dizer-lhe que a partir daí podia contar com todo o apoio que precisasse do Departamento de Estado. Frank Carlucci limitou-se a responder que, sendo assim, não já não havia necessidade de se encontrar com o Presidente.

E foi assim que o conservador Carlucci ajudou os mencheviques a ganharem em Portugal.

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