Sobre a falta de transparência no ensino superior público

O ensino superior público deveria ser um lugar de transparência, com uma ética bem definida. Se alguma dessa hipocrisia persiste é também porque muitos professores se recusam a lutar por melhores condições de trabalho. O que queremos ser, afinal: professores, colaboradores ou “facilitadores de aulas”?

Nathan Dumlao/Unsplash
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Sofia Silva é fotógrafa, professora e coordenadora da revista Propeller
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Sofia Silva é fotógrafa, professora e coordenadora da revista Propeller

Comecei a dar aulas no ensino superior público há não muito tempo, em 2011, na escola onde, três anos antes, concluíra uma licenciatura: o Instituto Politécnico de Tomar (IPT). Tinha acabado de concluir um mestrado em Glasgow, para o qual pedi um empréstimo que ainda estou a pagar. Nesse primeiro ano tive dois contratos a termo, a 50%. Recebia menos de 500 euros, dava oito horas de aulas de uma cadeira teórico-prática que tive de preparar de raiz. Na prática eram 10 horas semanais. Era, portanto, paga a cerca de 12 euros por hora.

Como toda a gente sabe o tempo que um professor despende fora do horário lectivo, escuso-me a falar nisso. Nos cinco anos seguintes, a dose repetiu-se com ligeiras variações. O contrato variou entre 50 e 59% e a carga de horário lectivo semanal entre seis e oito horas. Dá cerca de 20 euros por hora. Sim, há subsídio de férias, que acaba por funcionar de maneira quase perversa. Vem Agosto, mais uns trocos e 23 dias de férias depois e voltamos a entrar no circuito da precariedade mais dourados e menos esfomeados.

A passagem por esta escola não acabou sem as notas internas para ter direito a subsídio de alimentação, as notas internas a pedir material para dar aulas, as notas internas a justificar o porquê de não ter condições para dar aulas e, finalmente, o inferno de ter de passar por uma reunião de greve nessa escola, onde se disseram coisas que dificilmente esquecerei.

O melhor da escola são os alunos e foi sempre isso que foi justificando trabalhar neste contexto de instabilidade. As responsabilidades, claro, foram crescendo e a precariedade manteve-se, à medida que colegas com mérito difícil de descrever iam sendo largados ao mar. Deixei de colaborar com o IPT em Agosto de 2017 e agora dou aulas no privado. Dado o nível de precariedade que se pratica no ensino privado, não lhe posso chamar emprego — sem contrato, recibos verdes, etc. Sou paga a 25 euros por hora, preço que parece estandardizado neste meio. É este o nosso valor. Pago 60 euros por mês à segurança social, empréstimo ao banco, mas, finalmente, chegou o fim dos encargos com o doutoramento.

Em 2012 comecei essa maratona. Uns bons milhares de euros depois — propinas que pagava com os tais cerca de 500 euros que recebia por dar aulas no público —, quando chegou a altura de saldar as dívidas com a FBAUL e imprimir a tese para avaliação (oito cópias), tive de pedir dinheiro emprestado à família. O cúmulo, parece-me: que uma pessoa empregada, no ensino superior público, e prestes a obter um grau de doutoramento, se tenha de submeter a isto.

Então, escrutinando as coisas de um modo quase pornográfico, o que me apetece dizer é que não sei como fui sobrevivendo a pagar rendas, contas correntes, prestações ao banco (do mestrado, lembremos), deslocações, etc. Sobrevivi com ajuda, claro. A mãe a dar comida, o pai a pagar combustível, o namorado a dar o que podia e mais não vale a pena dizer. Não me prostituí, nem literal nem metaforicamente, mas a certa altura uma amiga contou que pagavam 300 euros por noite num clube de strip e considerei (ler com ironia, que também está pelas ruas da amargura).

De volta então à questão da hipocrisia ou da falta de transparência, como preferirem. Defendi a tese de doutoramento no dia 2 de Março de 2018, em circunstâncias pessoais que não desejo a ninguém. Aconteceu um ano e dois meses depois de entregue a tese, seis anos depois de começar o doutoramento. Mais umas centenas de euros depois, para entregar o documento final da tese, chega a última conta: 60 euros para obter o certificado do grau (em português e em inglês). Uma odisseia absurda.

Hoje sou finalmente notificada de que esse documento chegou, 40 dias depois. Pergunta-me o meu orientador, com a melhor das intenções, se o certificado — entenda-se, a conclusão do doutoramento — muda alguma coisa na minha situação laboral e a resposta é: não, sem surpresas. Como saberão os mais próximos, nunca foi essa a motivação para o meu projecto de doutoramento. Não estou zangada com a minha situação actual, senão com aquela a que me sujeitei antes. Porque perceber que quem dirige a escola pública se deixa orientar pela manutenção do seu feudo não é constatação que se faça de ânimo leve.

O ensino superior público deveria ser muitas coisas que não é, mas algumas dessas lacunas só persistem porque a grande maioria dos professores se resignou e se recusa a lutar por melhores condições de trabalho. Com medo de perder o emprego e outras tantas coisas mais. Acredito que se ensina por exemplo (também), mas que exemplo é este? Parece-me que está à vista. Se hoje encontro tarefa difícil, a leccionar, é a de explicar a um aluno que não deve trabalhar “de borla”, que deve pensar no colega profissional a quem está a “roubar o emprego”.

No privado, onde me pagam melhor à hora do que no público, há uma enorme precariedade, mas há coisas boas e a transparência é uma delas. Afinal, no privado, não se escondem os interesses económicos que sustentam as instituições. Eles são claros e obviamente interferem com aquilo que fazemos. Contudo, há liberdade para experimentar modelos pedagógicos e isso vale muito, para quem trabalha a fazer o que gosta. Há também uma desburocratização que é de salutar. Mas não imagino que caminho isto possa levar. Como só os alunos que acompanho saberão bem, passo mais horas a acompanhá-los fora de aulas do que em presença. Faço-o com gosto e só por isso o faço. Como só outros professores saberão, é bom vê-los amadurecer, tanto a nível profissional como pessoal.

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