Um Guerre(i)ro vai ao Mundial

Discordo frontalmente da ideia do “cumpre já e discute juridicamente depois”. Esperamos que venham tempos de mudança também para o plano nacional.

São conhecidas as aversões crónicas do associativismo desportivo à possibilidade de os agentes desportivos (como são os atletas) poderem submeter os seus litígios a um tribunal estadual. Também não é indiferente o receio de sanções por parte de federações desportivas, as quais servem de dissuasor da propositura de uma acção num tribunal estadual.

Efectivamente, deveu-se ao embaraço causado por um conjunto de litígios que desafiaram as fronteiras da regulação interna do desporto ao terem sido colocados perante tribunais estaduais que surge, em 1984, o Tribunal Arbitral do Sport (TAS), sediado na Suíça. Das decisões deste tribunal arbitral – a quem cabe, por exemplo, analisar as acções propostas contra entidades do associativismo desportivo – cabe um controlo muito limitado por parte do Tribunal Federal Suíço (TFS). Este facto tem sido muito criticado por diversas razões, mas verdade é que todo o contexto de clausura do associativismo desportivo se encontra em profunda erosão (v. sobre este ponto, Artur Flamínio da Silva, A Resolução de Conflitos Desportivos, 2017, pp. 530).

Por outro lado, já muito recentemente me pronunciei sobre o tema da necessidade de um efeito suspensivo – ainda que possam existir excepções – no Direito Administrativo do desporto português, demonstrando a sua grande importância prática, dando conta de uma decisão histórica no plano nacional.

No dia 31 de Maio de 2018, a questão que suscitei colocou-se, igualmente, no plano transnacional perante o TFS. O contexto é, de um modo simplista, o seguinte: (i) um atleta foi punido pela FIFA com uma determinada pena de suspensão da actividade profissional de seis meses; (ii) em recurso, o TAS aumenta a suspensão do atleta para 14 meses; (iii) o atleta propõe uma acção junto do TFS, de modo a obter, o que fez com sucesso, o efeito suspensivo da sanção disciplinar.

Sem dissertar sobre os fundamentos jurídicos da acção, cumpre-nos aqui deixar as razões que levaram o TFS a admitir a sua urgência, admitindo a existência de um efeito suspensivo, o que permite o jogador participar no Mundial de 2018 na Rússia. Nas palavras do TFS: “[n]a admissão de um efeito suspensivo (...) tiveram-se presentes as diversas desvantagens, nomeadamente, aquelas que o atleta de 34 anos sofreria, no caso de não poder participar numa competição que significa a coroação da sua carreira futebolística. Teve-se ainda em conta que o atleta não agiu de um modo negligente ou doloso, como se retira do comunicado de imprensa do TAS respeitante ao caso em apreço. Acresce, ainda, que do comportamento da FIFA e da AMA se pode retirar que não pretendem categoricamente que o autor da acção não participe no campeonato do Mundo de futebol. Finalmente e como foi evidenciado pela acção proposta pelo futebolista, está preenchido o critério de urgência, uma vez que a lista dos 23 jogadores que irão participar no Campeonato do Mundo de Futebol deve ser entregue até ao dia 4 de Junho à FIFA”.

Quem entende que os conflitos desportivos se resolvem somente no seio do associativismo desportivo perde, em grande medida, razão quando confrontado com a realidade, que mostra diametralmente o contrário. O dia 31 de Maio foi uma vitória. Não sobre a questão de saber se o atleta se dopou ou não, mas para perceber que a denominada ética desportiva não pode servir-se de um funcionalismo torpe que mais não é do que uma promoção do árbitro.

Com efeito, sem estar completamente resolvida a questão jurídica que envolve a punição de um atleta, não pode admitir-se que este possa vir a cumprir uma sanção disciplinar, podendo, mais tarde, vir a verificar-se que, afinal, a cumpriu ilegalmente. Discordo frontalmente da ideia do “cumpre já e discute juridicamente depois”. Esperamos que venham tempos de mudança também para o plano nacional.

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