Fermentar alimentos “é um acto de resistência”
Mudar o mundo, uma fermentação de cada vez — é isto que propõe Sandor Katz no livro Os Segredos da Fermentação, que acaba de ser lançado em Portugal. É uma bíblia do tema, com muitas receitas de fermentados de todo o mundo. E é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a vida e a política.
À primeira vista, Os Segredos da Fermentação parece ser um livro de receitas que promete ensinar-nos a fazer uma enorme quantidade de coisas que, apesar de muito diferentes umas das outras, têm em comum o facto de serem fermentadas — do pão da massa-mãe, a chutneys e conservas, vinho e cerveja, picles e kimchi, iogurte e queijo, miso e tempeh.
Algumas destas coisas fazem parte das nossas vidas desde sempre — o que é que pode haver de mais básico para a nossa alimentação do que o pão, o queijo ou o vinho? —, outras tornaram-se moda no Ocidente nos últimos anos, como o kimchi, de origem coreana, ou o tempeh. Alguma coisa aconteceu que levou a uma redescoberta deste tipo de processos, que implicam uma outra relação com os alimentos.
O norte-americano Sandor Ellix Katz, autor do livro, há muito que mergulhara neste universo e percebera a sua riqueza. Agora que o assunto começa a interessar a muito mais gente, ele leva anos de avanço — daí que Os Segredos da Fermentação, que acabam de ser editados em português pela Lua de Papel, se tenham transformado numa obra de referência (lançado pela primeira vez há 15 anos, tem agora uma nova versão muito mais completa) — não só pelo enorme trabalho de recolha de formas de fermentação de alimentos por todo o mundo, mas também porque, curiosamente, é muito mais do que um livro de receitas: é uma reflexão sobre o que representa, afinal, a fermentação nas nossas vidas.
Ele próprio se confessa surpreendido com a procura que o seu trabalho tem tido. “Será possível que este interesse que muitos amigos consideraram arcaico, esquisito ou até nojento quando começou a desenvolver-se, se tenha tornado interessante para tanta gente?”, interroga-se no início do livro.
Sandor Katz foi diagnosticado com VIH e em 1999-2000 começou a tomar medicamentos antirretrovirais, facto que é determinante para esta história. Não é por acaso que o livro começa com uma dedicatória a Jon Greenberg, “querido camarada da ACT UP [movimento activista que alerta para o fenómeno da sida e do VIH e pressiona os Governos para que apostem na investigação e na procura de curas]” que, escreve Sandor, foi quem o “apresentou pela primeira vez à ideia de coexistirmos de forma pacífica com os micróbios em vez de lhes declararmos guerra”.
Daí que a ideia da vida e da morte e da relação entre as duas percorra o livro. Numa entrevista por email a Sandor Katz, perguntamos se também o vê assim e como é que chega a temas tão profundos, partindo de algo aparentemente simples. “A fermentação é um processo profundo”, responde-nos o autor. “Ela consome plantas mortas e matéria animal e recicla os nutrientes de formas que permitem a existência de mais animais e plantas. Gosto de ligar os lados mais práticos da fermentação às suas implicações mais vastas.”
Na altura em que soube que tinha VIH, Sandor vivia numa comunidade onde se dedicava à agricultura, à jardinagem, à cozinha e, conta no livro, até construiu uma casa “por menos de 10.000 dólares, usando sobretudo materiais recuperados ou colhidos localmente”. Foi aí que começou a fazer o seu próprio queijo, com leite que ia buscar às cabras, e o seu pão, com massa-mãe. Gradualmente, a fermentação foi-se tornando mais importante na sua vida, até se transformar numa saudável obsessão, que o levou a ser convidado, em 1998, para dar um primeiro workshop sobre como fazer chucrute.
A certa altura, escreve, estava transformado num “professor e conferencista internacional”, falando sobre fermentação numa altura em que esta se começa a transformar num tema em voga — “citado como última tendência alimentar, como se o pão, o queijo, a cerveja, o vinho, o chocolate, o café, o iogurte, o salame, o vinagre, as azeitonas, o chucrute e o kimchi não existissem já”.
Ideias a fermentar
O que é que explica que nos tenhamos afastado de algo que durante toda a história da humanidade foi fundamental na alimentação?, perguntamos-lhe. “As pessoas só começaram a recear a fermentação no século XX, quando os primeiros triunfos da microbiologia, identificando patogénicos associados a doenças específicas, as levaram a associar bactérias com doenças”, responde ao P2 por email. “Agora, a ciência reconhece que vivemos num mundo de bactérias e a nossa maior protecção perante o reduzido leque de bactérias que nos podem deixar doentes são as comunidades saudáveis de bactérias que existem em nós e à nossa volta.”
“Infelizmente”, explica outra activista da área da alimentação, Sally Fallon, na introdução do livro, “os alimentos fermentados desapareceram praticamente da dieta ocidental, o que constitui uma grande perda para a nossa saúde e a nossa economia”. É aqui que o tema, que já tinha um lado filosófico, se torna também político.
Perguntamos a Sandor se concorda que o livro tem uma mensagem política ou, colocado de outra forma, se há algo de político no acto de fermentar. “Sim. Não apenas a fermentação, mas todas as formas de produção de alimentos tornaram-se políticas no mundo em que vivemos, em que a comida é feita em massa a partir de sementes patenteadas em quintas-fábricas, para depois ser ultraprocessada e ultra-empacotada.”
Defende, portanto, que “cultivarmos os nossos alimentos e usarmos métodos tradicionais para os transformar e preservar tornaram-se actos de resistência”. Além disso, acrescenta, “a fermentação é uma metáfora poderosa para a mudança social — as ideias estão sempre a fermentar e, quando as condições estão reunidas, essas ideias que fermentaram lentamente podem espalhar-se e impor-se”.
Quem quiser lançar-se na arte da fermentação tem neste livro toda a informação necessária, explicada da forma mais prática possível. Um exemplo, na secção dedicada ao iogurte: “É preciso uma cultura-mãe para fazer iogurte. Pode comprar culturas liofilizadas, comprar qualquer iogurte comercial que contenha culturas vivas ou procurar uma cultura tradicional. Se usar um iogurte comercial como cultura-mãe, assegure-se que diz ‘contém culturas vivas’ no rótulo para se assegurar que não foi pasteurizado depois da fermentação, matando as bactérias.”
Relativamente às culturas tradicionais de iogurte, Sandor apresenta uma lista de fontes no final do livro e conta até que há uma loja em Nova Iorque que “faz um iogurte delicioso usando a mesma cultura-mãe que os fundadores da loja trouxeram da Europa do Leste há mais de 100 anos”.
No capítulo dedicado aos vinhos, começa com hidromel ao estilo etíope, passa por vinhos de fruta, de flores, champanhe de gengibre ou sopa de borras de vinho. Quem quiser arriscar na área das farinhas pode experimentar umas “panquecas de massa velha da fronteira do Alasca” ou o injera, o pão esponjoso etíope (bom para acompanhar o guisado de batata- doce e amendoim, cuja receita o autor também inclui no livro).
Apesar do seu entusiasmo pelo tema, Sandor aconselha moderação quando lhe perguntamos se se pode comer alimentos fermentados em grandes quantidades. “O grande valor na nutrição é a diversidade. Não é por uma coisa ser boa que só se deve comer isso. Comam vegetais e fruta frescos. E comam diferentes tipos de fermentados com moderação.”
Uma das coisas que o têm fascinado nesta viagem de descoberta é a enorme diversidade de alimentos fermentados que existe por todo o mundo. “A transformação microbiana da nossa comida é inevitável, e pessoas inteligentes em todo o mundo desenvolveram métodos de guiar essa transformação para criar alimentos mais deliciosos, mais digeríveis, mais estáveis, em vez de os deixar decompor.”
Para quem possa ter dúvidas sobre os sabores que vai encontrar, deixa, nas suas respostas, um conselho: “As coisas mais deliciosas do mundo são fermentadas: chocolate, café, queijo, carnes curadas, azeitonas, picles, condimentos… Se um fermentado particular tiver um sabor ou textura que não sejam familiares, tente misturá-lo com algo neutro, que dilua um pouco o sabor. A maior parte dos fermentados pode ser forte ou mais suave. Talvez seja melhor começar por uma versão suave.”
Depois… é começar a revolução. No final do livro, Sandor fala da “reencarnação cultural” e cita Jacob Lippman, pioneiro da microbiologia, que descreve os microorganismos como “o elo de ligação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos” e explica que, “sem eles, os cadáveres acumular-se-iam e o mundo dos vivos seria substituído pelo reino dos mortos”. Por isso, no final, Sandor fala da sua própria morte e pede: “Coloquem-me apenas numa cova na terra, sem caixão, por favor, e deixem-me decompor depressa.”
E conclui: “O poder afirmador destes alimentos básicos encontra-se em profundo contraste com os alimentos sem vida e industrialmente processados que enchem as prateleiras dos supermercados. Inspire-se na acção de bactérias e leveduras e faça da sua própria vida um processo transformador.” Porque, quer queiramos quer não, we are living in a bacterial world.