Vestígios de Lisboa

Depois de ter orientado no Porto o workshop “A escuta da Cidade”, o jornalista e investigador brasileiro Marcelo Carnevale, com pensamento sobre a ocupação do espaço público, viajou até Lisboa. Aquilo que encontrou está longe das imagens que construiu durante uma vida. Impressões da cidade, em português do Brasil.

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Pedro Cunha/arquivo

No vagão do trem que circula pelo subterrâneo lisboeta, duas mulheres negras revelam os matizes da cidade. Em um silêncio cansado, imprimem a primeira imagem de boas-vindas ali, no metrô que parte da Estação Oriente para conduzir-me ao Rossio. São oriundas de alguma ex-colônia, como eu e, sem se darem conta, oferecem-me a sensação de familiaridade, pelos tons de pele chocolate e caramelo, tão presentes no Brasil. Nesse instante, são a luz quente de Lisboa.

Eu, a andar no sentido contrário ao do trem, como se retrocedesse no tempo, ganho esse enquadramento nas minhas lentes: seus rostos tão marcantes à minha frente. Elas fazem-me relembrar a infância no Rio de Janeiro, os vendedores ambulantes na areia da praia, os moradores em situação de rua, quase todos de pele negra sob o sol escaldante, em contraste com o branco das pedras portuguesas.

Meu destino é a Estação do Rossio e o trem avança: Cabo Ruivo, Olivais, Chelas, Bela Vista/Chelas, Olaias, Alameda, Arroios, Anjos, Intendente, Martim Moniz e, finalmente, Rossio.

Carrego Lisboa nos bolsos como um poema escrito há muito tempo, como o verdadeiro tesouro achado na infância carioca: a cidade imaginária que eu conseguia decalcar dos detalhes arquitetônicos do Rio de Janeiro, um exercício de ver uma cidade dentro da outra cidade. Porque as crianças conseguem ver riquezas nas pedras portuguesas. Brincam de escolher uma das figuras que se repetem no padrão estampado nas calçadas e caminham sem pisar em qualquer outra diferente, para não “perder o jogo”. Sempre soube, sempre desejei esta cidade.

As lembranças fogem quando meu telemóvel passa a receber mensagens de outro brasileiro. Alugou-me um quarto próximo ao Elevador de Santa Justa. É didático na hospitalidade e tenta cercar-se de todas as certezas de que suas pistas levarão ao endereço o quanto antes. Nem desconfia de que estou perdido nos anos 80, mergulhado na memória de um centro carioca decadente e emudecido na sua importância como ex-sede do império português, como ex-capital do Brasil.

Esforço-me para sair do torpor, igual ao das mulheres negras diante de mim.

A segunda imagem lisboeta vem pelo mesmo WhatsApp: é uma cruz verde tipo néon. Sinaliza que meu endereço fica ao lado da farmácia. Não sei por quê, o luminoso rouba-me o encanto.

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Rafael Marchante/Reuters

Nesses últimos anos, uma cena do documentário Mariza and the story of fado, produzido pela BBC, em 2007, marcou-me profundamente: o compositor Pedro Campos apresenta à cantora sua nova composição, Montras. A cena em que eles tomam vinho em taças grandes, a conversar e a cantar, é bonita pela simplicidade, mas, sobretudo por adiantar-me algo de Lisboa nos versos da letra: “... voam gaivotas no horizonte, só o teu amor é tão real”.

“Montras” é uma palavra desconhecida para nós, brasileiros. Só soube dela pela música e é dela que me lembro (mesmo sem ainda saber seu significado), quando, ao alcançar a rua na saída da Estação Rossio, me deparo com a realidade.

O que enxergo, com o olhar de visitante, é uma cidade exposta a um turismo massivo, como se cada detalhe da Baixa pudesse transformar-se num souvenir sem lembranças. Sem querer, o significado de “montras” (vitrine) revela-se nessa experiência: a imagem de uma cidade-vitrine, que se vende a si mesma como um artigo chinês de fabricação duvidosa. Por alguns instantes, detesto Lisboa.

Sinto vergonha ao descobrir-me na condição de turista, tão distante da cidade imaginária desenhada na minha infância. Meu sonho voa rapidamente do bolso da camisa como um papel de bala pelas pedras portuguesas do Rossio. Resta apelar ao google maps e enquadrar-me como mais um dos turistas-rinoceronte: cabeça baixa, guiado pelos smartphones e pelas “montras”.

Meu senhorio está a postos. Com orgulho, detalha a façanha de ter quatro imóveis alugados em nome dele para sublocar aos turistas. Aponta para o espaço e diz excitado: só este quarto, na alta temporada, paga boa parte dos custos de todos os imóveis. Falastrão, despeja uma série de problemas com seus inquilinos: italianos, franceses, espanhóis. Gente que aluga e deseja antecipar a saída ou que reclama do barulho da Baixa. Ele sente orgulho desses problemas, como um executivo de grandes negócios. Olho para aquela cama de rentabilidade máxima, num apartamento de estilo pombalino com uma sacada.

Livro-me da conversa e tento repensar a estratégia de como colocar o corpo na cidade, de como realmente chegar em Lisboa. Há um trunfo: nessa minha curta vida de turista-rinoceronte, eu ainda não vi o Tejo.

Ganho a Rua Augusta, alcanço a Praça do Comércio num esforço de driblar estátuas humanas, shows de sapateado, performance de músicos cegos, pedintes, garçons oferecendo mesas e muitas, inacreditavelmente muitas selfies (aliás, pode-se alugar um pau de self oferecido por alguns africanos). Enfim, chego entre as Avenidas da Ribeira das Naus e Infante Dom Henrique.

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Daniel Rocha

O Tejo, sob a perspectiva do passeio público, está tomado por pessoas felizes. Eu, cada vez mais melancólico, resolvo procurar os moradores da cidade. Plano complexo, mas que conta com a ajuda de um amigo lisboeta que mora em São Paulo. Acolhido por amigos dele, encontro Lisboa finalmente, 24 horas depois de chegar na Baixa, no 31 de dezembro de 2017.

Quem são os lisboetas? Nesse cais, que liga o passado ao futuro, há os que resistem ao turismo que provocou outro tipo de terramoto na Baixa e no Chiado. Buscam algum tipo de consolo nos becos, escadas e mirantes. Mas quem são os lisboetas? O que encontro, para além da emblemática cena das roupas no varal, que indica sinal de vida local, são as diferentes perspectivas do Tejo. Encaixo mais uma peça no meu quebra-cabeça: os lisboetas são os que contemplam o Tejo, não o perdem de vista mesmo sem vê-lo a toda hora. Vez por outra, de relance, entre um beco e uma escada da Graça, eu vacilo e vejo a Baía da Guanabara. As duas cidades confundem-se dentro de mim. Lisboa é a cidade que eu invento, composta por outras vivências, no caso, fortemente, pelas lembranças do centro carioca. Não é saudade, mas reinvenção.

Quanto mais lisboeta percebo-me, mais carioca eu sou. Trata-se de um retorno a um Rio de Janeiro que não existe mais e da descoberta de uma Lisboa que só existiu na minha cabeça. O céu azul das duas cidades, os montes, as cozinhas generosas, os navios, os portos, os botequins, as mercearias com legumes e frutas expostas, um tipo de humor, um tipo de tristeza e uma vocação para a resistência. São cidades fortes, com topografias imperiais e sítios urbanos com pequenas joias, guardada a proporção entre o que faz a mais antiga tão rica na arquitetura histórica e, a mais nova, deslumbrante, numa topografia que homenageia de forma surpreendente a terra portuguesa.

Sempre traí o Rio com Lisboa. Como um amante que, finalmente, depois de anos, toma coragem para lançar-se na empreitada amorosa, percebo que é tarde demais. Lisboa não me esperou. Tenho vontade de caminhar dia e noite, já sei que não ficarei muito tempo, pois sonhos são inabitáveis. Tento seguir um velho que se embrenha por um beco, como se pudesse roubar-lhe o passado e tudo o que ele viveu aqui.

Na errância, dos becos da Alfama caio num plano inóspito da Rua da Alfândega. Constato que o cais não recebe mais invasores, comerciantes, artistas, aventureiros, muito menos amantes. Agora, a cidade turística mata a sede dos curiosos e quase tudo está fora de alcance. Resta a partida, o Tejo e o mar.

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