Como os assassínios de 1968 deram poder à NRA

A discussão sobre o controlo das armas nos EUA está intimamente ligada às convulsões sociais da década de 1960 no país, das questões raciais às mortes de Robert Kennedy e Martin Luther King Jr.

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Robert Kennedy JFK Library/Discovery Channel
Martin Luther King Jr.
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Martin Luther King Jr. Chick Harrity/AP
Evento organizado pela NRA
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Evento organizado pela NRA Adrees Latif/Reuters

Um dia depois de uma bala ter perfurado o crânio do senador Robert Kennedy, o irmão do Presidente John F. Kennedy, o seu sucessor, Lyndon B. Johnson, enviou uma carta ao Congresso norte-americano. "Deixemos que a nossa dor se transforme em acções construtivas", apelou o Presidente dos Estados Unidos numa mensagem escrita a 6 de Junho de 1968.

Nessa carta, o Presidente Johnson lamentou o facto de as pessoas com doença mental terem acesso às armas, e falou dos "assassínios por correspondência" – uma realidade que permitiu a Lee Harvey Oswald comprar uma espingarda por 19,95 dólares numa loja de Chicago, cinco anos antes, e matar o irmão de Robert Kennedy, o então Presidente John F. Kennedy. "Apelo ao Congresso, em nome da sanidade e da segurança – e em nome da nação –, que dê à América a Lei de Controlo das Armas de que ela precisa", escreveu Johnson.

Em privado, o sentimento de urgência do Presidente era ainda maior. "Temos apenas duas semanas, talvez dez dias. Temos de chegar aos gabinetes dos congressistas antes da NRA", disse Johnson, segundo as memórias do seu principal conselheiro para os Assuntos Internos, Joseph Califano.

Um problema à parte

O Presidente tinha experiência em transformar o caos em vantagem política. Cinco dias depois da morte de John F. Kennedy, Johnson apelou à aprovação urgente da Lei dos Direitos Cívicos, o que veio a acontecer sete meses mais tarde. Depois, usou o assassínio do reverendo Martin Luther King Jr. para conseguir aprovar a Lei da Habitação Justa. Agora, a morte do jovem e promissor senador Robert Kennedy, que era seu rival no Partido Democrata, dava-lhe uma nova oportunidade para cumprir a sua agenda política.

Mas a discussão sobre o controlo das armas não se resumia à necessidade de pôr fim a velhas injustiças, como no caso dos direitos cívicos ou do direito à habitação.

Esta discussão estava intimamente ligada às convulsões sociais da década de 1960, e expunha divisões políticas e culturais que atravessavam classes, raças e modos de vida rurais e urbanos, muitas vezes pondo membros do mesmo partido uns contra os outros.

Também acicatou os medos históricos de sublevações de escravos, numa época em que os activistas negros lutavam pelo direito à posse de armas. E agravou as preocupações com a subida das taxas de criminalidade, o que levou algumas pessoas a pedirem mais restrições à venda de armas e outras a procurarem mais segurança na compra de armas.

Foi nesse período que a National Rifle Association (NRA) passou de um grupo de atiradores desportivos e caçadores com opiniões políticas muito diversas a um poderoso lobby que viria a marcar os termos do debate nos 50 anos seguintes.

"1968 foi um ano de muita ansiedade, com a agitação racial e o aumento da criminalidade a enquadrem o debate sobre as armas", disse Kyle Longley, autor do livro LBJ's 1968 e professor de História e Política na Universidade Estadual do Arizona. "Ainda estamos a ouvir os ecos dessa época nos dias de hoje."

David Keene, presidente da NRA entre 2011 e 2013, disse que 1968 "foi o ponto de viragem". Foi nesse ano que a América teve "a sua lei mais restritiva da Segunda Emenda", o que levou os proprietários a temerem que os políticos quisessem tirar-lhes as armas.

Sem novas leis há 30 anos

O Governo federal já não tentava controlar o uso de armas pelos cidadãos desde a década de 1930. Os crimes cometidos por foras-da-lei como a dupla Bonnie e Clyde e os gangsters de Al Capone levaram o Presidente Franklin D. Roosevelt a promover um "new deal" para combater a criminalidade, impondo taxas rígidas sobre a compra de caçadeiras de canos serrados e exigindo aos fabricantes e vendedores que se registassem junto do Governo.

A NRA, fundada em 1871 por antigos oficiais da Guerra Civil que queriam melhorar a destreza dos recrutas, apoiou essas medidas. "Nunca defendi a prática generalizada da posse de armas", disse o então presidente da NRA, o atirador olímpico Karl Telford Frederick.

Mas os anos 60 mudaram tudo. A nova geração queria comprar armas mais para defesa pessoal do que para a prática desportiva ou para a caça.

Ao mesmo tempo, o assassínio de John F. Kennedy, em 1963, expôs a facilidade com que se podia comprar armas de alto calibre entre estados, o que levou os defensores do controlo das armas a pedirem a aprovação de leis a nível federal.

A Ordem dos Advogados não tinha certezas sobre se as novas propostas constituíam uma violação da Segunda Emenda. Em 1965, os delegados da Ordem convidaram o vice-presidente executivo da NRA, Franklin Orth, para um debate com Joseph Tydings, um senador do Maryland do Partido Democrata que era praticante de caça. Os argumentos de Tydings – de que essas propostas não eram nem inconstitucionais nem excessivamente restritivas – convenceram os delegados. Na votação final, 184 votaram a favor das propostas e apenas 26 votaram contra.

Mas nada era simples na questão do controlo das armas, muito menos a ligação que existia com o estado das relações entre raças.

Em defesa de leis restritivas

Numa conversa telefónica em Julho de 1966, o mayor de Chicago, Richard J. Daley, queixou-se ao Presidente Johnson de que o país tinha caído "na ilegalidade e na desordem", e criticou o activismo de Martin Luther King Jr. e o aumento da violência dos gangues.

"Há por aí muitas pessoas, especialmente os não-brancos, a comprar armas a torto e a direito. Há espingardas e pistolas por todo o lado, e não há registo de nada", disse Daley.

No mês seguinte, em Agosto, um estudante branco chamado Charles Whitman matou 15 pessoas com uma espingarda a partir da torre do relógio da Universidade de Austin, no Texas, o estado onde o Presidente Johnson nascera.

Na Califórnia, assim que os Panteras Negras afirmaram o direito a andarem com armas para defesa pessoal ao entrarem armados no Congresso do estado, o governador Ronald Reagan promulgou a Lei Mulford de 1967, proibindo a posse de armas. "Não há nenhuma razão para que um cidadão ande nas ruas com armas carregadas", disse o republicano.

Com os primeiros meses de 1968 chegaram os grandes problemas políticos. Depois das eleições primárias no New Hampshire – em que Richard Nixon dominou no Partido Republicano e o senador Eugene McCarthy expôs a divisão entre os democratas em relação à guerra do Vietname ao obter 42% dos votos –, Robert Kennedy anunciou a sua candidatura à Casa Branca pelo Partido Democrata: "Tornou-se evidente que só podemos mudar estas políticas desastrosas e divisivas se mudarmos os homens que as aprovam."

Johnson decidiu desistir da sua tentativa de reeleição, dedicando os restantes meses na Presidência a gerir um país a resvalar para o caos, com guerras entre gangues, revoltas estudantis e os assassínios de King, em Abril, e de Robert Kennedy, dois meses mais tarde, a 6 de Junho de 1968.

O Congresso aprovou uma lei de combate à criminalidade no dia em que Robert Kennedy morreu, com cláusulas que proibiam a venda de revólveres entre estados. Mas essa lei não incluía uma proposta para controlar a venda de espingardas e de caçadeiras que o irmão de Kennedy, Edward, tinha feito meses antes.

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Robert Kennedy com outros membros da família no funeral de John F. Kennedy Abbie Rowe/Reuters

Ainda assim, Tydings, o senador do Maryland e aliado de Robert Kennedy, viu uma oportunidade. Como caçador, sentiu que tinha alguma credibilidade entre os defensores das armas e estava disposto a usá-la. Numa sufocante manhã de domingo, no dia do funeral de Robert Kennedy, Tydings assumiu o lugar do seu falecido amigo no programa Meet the Press. Tinha chegado a altura de pedir ao Congresso a obrigatoriedade do registo de todas as armas e do licenciamento dos seus proprietários.

"Uma pessoa que foi alcoólica, que tem condenações por participação em tumultos ou por ter cometido um crime, não deve ser autorizada a ter uma arma", disse o senador na televisão.

Indignações passageiras

A resposta foi avassaladora, recordou Joseph Tydings, actualmente com 90 anos, numa entrevista recente. Os escritórios da NRA foram rodeados por piquetes e os congressistas foram inundados com cartas a pedirem um maior controlo das armas.

Mas essa indignação desapareceu rapidamente. A NRA começou a pedir aos seus associados que enviassem cartas aos congressistas, e o presidente da associação disse que o direito dos praticantes de tiro e dos caçadores corria "um sério risco".

Um dos senadores disse que a sua caixa de correio mudou de 60% a favor de um maior controlo das armas na semana da morte de Robert Kennedy, para 80% contra duas semanas mais tarde, segundo a revista Congressional Quarterly.

Mesmo com o apoio público a desaparecer, Tydings não deixou de tentar convencer o Presidente Johnson. No dia 19 de Junho, o seu assistente ligou para a Casa Branca. De forma inadvertida, a chamada foi passada a Johnson no meio de uma reunião.

A conversa foi brusca.

"Acho que tem uma oportunidade histórica para proteger as pessoas através do registo e do licenciamento das armas", disse Tydings, segundo a transcrição da conversa.

O Presidente deixou claro que tinha assuntos mais urgentes para resolver.

Ainda assim, Tydings voltou à carga com uma carta. E Johnson, que não estava satisfeito com a lei de combate à criminalidade que tinha acabado de promulgar, respondeu-lhe no dia 24 de Junho. Estava preparado para apoiar as propostas de Tydings com vista ao licenciamento e ao registo de armas, e aumentou a pressão sobre o Congresso.

Foi um passo grande de mais.

Em pouco tempo, as iniciativas legislativas ficaram paralisadas no Senado – afundadas, disse Joseph Califano, na recusa de Tydings em fazer compromissos. O Presidente, como pragmático que era, ficou ainda mais impaciente.

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Jason Reed/Reuters

O contra-ataque da NRA

Os vários adiamentos e derrotas das propostas mais ambiciosas também reflectiam a agitação dos tempos. Edward Kennedy, ainda de luto pelo irmão, não compareceu às votações. E os republicanos que Tydings convenceu não compensaram os democratas do Sul que estavam contra ele.

Os senadores adiaram uma decisão final até depois de um Verão que trouxe ainda mais sinais de que as autoridades estavam a perder o controlo. Às portas da convenção nacional do Partido Democrata, em Chicago, a polícia e a Guarda Nacional espancaram e lançaram gás lacrimogéneo contra manifestantes anti-Vietname; lá dentro, o próprio Partido Democrata estava dividido, com o vice-presidente de Johnson, Hubert Humphrey, um apoiante da guerra, a bater McCarthy na luta pela nomeação.

Quando o Congresso regressou de férias, o Senado passou vários dias a debater antes de aprovar uma versão suavizada da lei, que pôs fim à venda de armas e de munições entre estados e através do correio, e limitou a venda a menores. Mas o licenciamento e o registo nem sequer foram discutidos.

A NRA estava dividida. Na revista American Rifleman – onde Oswald viu o anúncio à espingarda que usou para matar o Presidente Kennedy –, Orth indicou que aprovava a lei, mas com relutância: "Como um todo, a medida parece ser algo com que os desportistas da América podem viver."

Outros, cuja voz em breve viria a prevalecer, sentiram-se ameaçados. "O verdadeiro objectivo era a confiscação das armas", diz hoje Keene.

A crescente influência política do grupo também estava a levantar questões. Em Outubro, o Departamento de Justiça pediu ao FBI que investigasse as actividades de lobbying da NRA, que alguns políticos diziam ultrapassar os limites de uma organização educativa isenta de impostos.

No final desse mês, no dia 22 de Outubro, Califano viu um Presidente Johnson "furioso" a promulgar uma lei suavizada. O Presidente leu a declaração com os olhos em baixo, e só levantou a cabeça para lamentar que a lei não desse segurança a um país que tinha agora "mais armas do que famílias".

"Se queremos manter as armas longe das mãos dos criminosos, dos loucos e dos irresponsáveis, então temos de aprovar o licenciamento", disse Johnson. "Se queremos identificar rapidamente um criminoso armado, então temos de aprovar o registo."

O Presidente virou a sua fúria para a NRA. "As vozes que bloquearam estas cláusulas de segurança não foram as vozes de uma nação indignada", disse, repetindo a frase que tinha proferido quatro meses antes, aquando da morte de Robert Kennedy. "Foram as vozes de um lobby poderoso, um lobby das armas, que levou a melhor desta vez, num ano de eleições."

Arsenal e poder

Johnson não podia antecipar o poder e o alcance com que essas vozes acabaram por se impor muito para além de 1968. Nem podia saber de que forma o arsenal de armas nos EUA iria crescer, com a contagem per capita a duplicar para uma arma por pessoa hoje em dia. E que as cláusulas dessa lei suavizada viriam a ser pura e simplesmente apagadas pelo Congresso nos anos seguintes.

Nas semanas a seguir à promulgação da lei, no dia 5 de Novembro, Nixon venceu as eleições presidenciais, cristalizando as ansiedades dos tempos na sua promessa de restabelecer a lei e a ordem.

Em Dezembro, segundo mostram documentos do FBI, Orth registou a NRA como um grupo de lobby – um reconhecimento tácito do seu trabalho recente e dos seus objectivos, preparando-se para criar um departamento de lobbying que viria a mudar o debate sobre as armas no meio século seguinte.

O potencial político da NRA tornou-se claro em 1970, quando Tydings se candidatou à reeleição.

O democrata do Maryland era visto como um vencedor à partida, apesar dos sinais de oposição que iam aparecendo em cartazes em zonas rurais com frases a favor das armas. No dia da eleição, Keene, então um conselheiro de Nixon, estava a acompanhar os resultados na Casa Branca quando decidiu ligar a um amigo para saber como é que as coisas estavam a correr no Maryland.

A resposta foi surpreendente. Tydings estava a caminho de ser derrotado.

"Fora da cidade de Baltimore", recorda Keene, "havia longas filas com carrinhas todo-o-terreno nas secções de voto, com suportes para armas bem visíveis na parte de trás."

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