O moinho que só dá bons sonhos

Perdidos no meio da natureza, rendemo-nos ao convite deste Molinum: descansar e recarregar baterias, com os pés fincados na tradição e a mente aberta a boas energias.

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Chegar aqui não é fácil. Há curvas e curvinhas e, sobretudo de noite, viaja-se com aquela sensação de estarmos perdidos no universo, à procura do nosso caminho. Não desistimos, porém. Nem mesmo quando o sistema de navegação nos engana. Paro por um segundo, respiro fundo — e até a tagarelice dos miúdos no banco de trás faz uma pausa —, volto a inserir as instruções e sigo viagem, sempre, sempre a subir. A estrada vai ficando cada vez mais estreita, por vezes esburacada, parecendo adensar a sensação de que continuamos no caminho errado. Até que, bem no topo do que parece ser uma colina (a manhã mostrar-nos-ia horizontes mais amplos do que esperávamos), chego por fim ao destino: um bed & breakfast com uma singularidade — inclui um moinho centenário, que vamos ocupar.

Ainda não é muito tarde, mas tudo à volta já é silêncio. Apenas o cantar dos ralos quebra a solenidade que, em noites de céu limpo, é iluminada por um manto de mil pontos de luz, cujo protagonismo não é abafado por muita iluminação artificial — a que há é apenas a necessária para sabermos onde pisamos.

Tal como nós, noutros tempos, também outra visitante especial fez o nosso serpenteante trajecto e aqui parou um dia. Então, respirou fundo e decidiu recomeçar. A diferença é que para Joana Mendes, este era (e é) o seu “ninho”. Algarvia, Joana estudou gestão em Lisboa e ficou pela capital a trabalhar. Até que surgiram os anos da crise e o desemprego, que a levaram a compreender que teria nesta propriedade uma oportunidade. Para ela, uma verdadeira viagem ao passado com destino ao futuro: é que foi aqui que viveu até aos três anos.

Agora, estamos as duas no meio desta propriedade, outrora envolta pela aridez dos campos de cereais. No exacto local em que o bisavô construiu um moinho em 1900 — e que laborou como comunitário até à década de 60 do século passado. “A população nos arredores era alertada pelo som dos búzios presos às velas do velho mastro de carvalho”, descreve-nos Joana. Quando a melodia invadia os montes circundantes, significava que o vento estava de feição e, então, gentes um pouco de toda a parte à volta subiam o morro com os cereais para moer. E a história até é mais antiga, porque antes de o bisavô da actual proprietária pôr as mãos na massa já aqui havia uma pequena indústria de cereais, existindo registos de um moinho anterior, erguido em 1838, um espaço que agora é ocupado pela casa principal.

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Um moinho como herança

O moinho e tudo à sua volta acabaria por calhar ao pai de Joana no sorteio de herança e este, por sua vez, tratou de investir na propriedade. Em 1985, teve a ideia de construir uma casa maior e de dotar o espaço com valências procuradas por quem chega ao Algarve para uns dias de repouso: piscina, court de ténis, espaços para relaxar. “Conseguiram criar um ambiente descontraído”, descreve Joana. Começaram por alugar a propriedade primeiro como um todo e, desde 1999, como bed & breakfast. Mas Joana pressentiu que havia mais potencial neste cantinho.

O regresso não foi apenas uma fuga à crise. Foi também voltar as costas a um outro estilo de vida, começando por arranjar espaço para o início de uma nova. Um processo em que, explica Joana, vai dando um passo pequenino de cada vez — “vamos arranjando todos os anos alguma coisa, mas optei por não contrair empréstimos”. É que se os anos difíceis em Lisboa a arrastaram para sentimentos mais depressivos, também se encarregaram de colocar no seu caminho respostas em forma de gente. Foi o caso de Renata Cortês, que depois de estudar exercício e saúde na Faculdade de Motricidade Humana e de acumular experiência como personal trainer em ginásios, tanto em Portugal como em Espanha, percebeu que o seu caminho não seria por aí. Foi em Barcelona que descobriu o mindfulness, uma prática que passa por chamar mente e corpo ao presente de forma a conseguir lidar com pensamentos e emoções: “A maioria das vezes não prestamos atenção ao que nos rodeia por estarmos presos no passado ou focados no futuro”, explica. O mindfulness consiste em técnicas de meditação simples que pretendem anular o stress provocado pela ansiedade ditada pela experiência. Em Barcelona, Renata acabaria por fazer formação no Instituto esMindfulness e, já em Portugal, os seus caminhos cruzaram-se com os de Joana. E, subitamente, ambas compreenderam que a resposta que procuravam residia num pequeno morro algarvio, onde proporcionam também sessões de redução de stress.

O foco na arte de bem receber

Se aqui a ideia não passa por perder dinheiro, a anfitriã, com quem conversamos numa sala luminosa e acolhedora, também não pretende ter uma porta aberta com a pressão de ter de facturar obrigatoriamente para conseguir pagar as prestações das quais em tempos se conseguiu livrar. Assim, à medida que o projecto vai crescendo, e recebendo mais pessoas, os arranjos vão sendo feitos. E Joana vai-se adaptando às necessidades que vão surgindo: “Há tempos ficámos sem ajuda nas limpezas. Tinha duas hipóteses: ou ficar irritada ou concentrada para fazer bem aquele serviço.” “Arranjar alguém no próprio dia não era viável, por isso optámos por fazer nós, com a ideia em mente que, com o valor poupado, ainda jantaríamos fora”, brinca Renata.

Também o pequeno-almoço, recheado de mimos caseiros em forma de compotas de fruta ou de sumo acabado de espremer, é todo feito ali e preparado por Joana, que faz questão de estar presente, ainda que de maneira recatada, para acolher sem imposições quem recebe. No fundo, aqui somos hóspedes mas sentimo-nos tratados como convidados.

Depois de assentar arraiais e de proceder a várias melhorias na casa principal, Joana compreendeu que um dos factores que a poderia diferenciar das demais unidades seria o moinho. Aos poucos, foi sendo reconstruído, recuperado e preparado para se transformar numa casinha à medida de duas pessoas (ainda que, no nosso caso, um adulto e duas crianças pequenas tivessem conseguido passar uma noite confortável, o moinho está idealizado para escapadas românticas ou para uma só pessoa que busque um pouco de isolamento). No piso térreo, as grossas paredes em pedra do moinho foram esculpidas para receberem uma casa de banho em miniatura e uma abençoada kitchenette que nos permitiu inventar um jantar já fora de horas. Degraus de pedra ao longo da parede circular levam-nos ao quarto — uma confortável cama ao centro e pouco mais. Na decoração, elementos que nos remetem para o antigo e para o folclore local, mas também detalhes de design de extremo bom gosto.

Ao fim de pouco tempo não nos espanta que muitos encontrem aqui o espaço ideal para recarregar baterias. Até porque nesta propriedade o stress, assim como uma boa parte do mundo, fica à porta: há acesso à Internet, mas a televisão foi abolida. Por isso, depois da ceia, durante o serão, trocamos os filmes pelos jogos de mesa, jogando à bisca dos cinco até nos cansarmos. Na casa principal há mais com que passar o tempo: matraquilhos, mesa de snooker, jogos vários… E ao longo do dia, com o cantar dos ralos a ser substituído pelas harmonias de insectos e pequenas aves que parecem compor uma orquestra, tão depressa se encontra lugar junto a uma lareira, se o frio se impuser, como, se o calor apertar, se passa o tempo em mergulhos numa piscina com uma vista de quase 360º. Entre tantas sensações, impossível não cumprir o proposto por Renata: viver o momento em pleno. E bons sonhos não faltam.

A Fugas esteve alojada a convite do Turismo do Algarve

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