O pântano putrefacto do futebol português

Acabar com isto é uma tarefa ciclópica. Deixar tudo como está é oficializar o faroeste em pleno século XXI.

A reportagem da SIC sobre o suposto aliciamento de jogadores do Marítimo por parte de colaboradores do Benfica é mais um prego no caixão do futebol português. Embora a solidez da investigação tenha alguns aspectos questionáveis – dada a ausência de indícios materiais, somos basicamente obrigados a confiar no jornalista e na credibilidade da sua fonte (anónima) –, a verdade é que há demasiadas coincidências suspeitas e, sobretudo, péssimas justificações. Aquilo que vimos pode ainda ser curto para sustentar um caso em tribunal, mas é mais do que suficiente para agravar a nossa convicção de que o futebol se transformou num meio onde a corrupção não é apenas um acontecimento infeliz, mas o reflexo de todo um sistema estruturado em cima da fraude e das jogadas de bastidores.

Peço encarecidamente aos leitores cujo sangue ferve todos os domingos para não correrem para a caixa de comentários deste texto munidos de fita métrica, cheios de vontade de comparar os níveis de aldrabice praticados por Benfica, Sporting e Porto. Admito a existência de matizes e diferenças de grau, mas aquilo que defendo é outra coisa – é que este tipo de batota é sistémica e faz partes das regras de jogo dos três grandes, assim como o doping faz parte do ciclismo: quem não pratica é porque é parvo, ou anjinho, ou as duas coisas.

O problema de o futebol estar inquinado desta maneira é que deixa de haver qualquer forma de auto-regulação possível. Não vale a pena ir vender t-shirts brancas para a porta da pocilga. As autoridades judiciais e políticas têm de abandonar os camarotes presidenciais dispostas a repensar o futebol de cima a baixo. Isso inclui não só as estruturas dos clubes, as suas regras obscuras de funcionamento e a perpetuação dos seus dirigentes, mas também os seus satélites comunicacionais: a imprensa desportiva enquanto campo fértil de recados; os comentadores televisivos enquanto linha avançada do fanatismo clubístico; os directores de comunicação enquanto poluidores oficiais do espaço público. Portugal tem três diários desportivos e todas as notícias sobre investigações sensíveis ou nascem nos jornais generalistas ou nas televisões. Os jornais desportivos, com redacções extensas e focadas, que todos os dias acompanham clubes, jogadores e dirigentes, quase nunca dão uma notícia original sobre justiça e futebol. Nunca viram nada, nunca ouviram nada, nunca dizem nada.

Miguel Poiares Maduro escreveu neste jornal um excelente ensaio intitulado “Como o jogo mais bonito ficou tão feio”, alertando para aquilo a que chama a cartelização do futebol. Em todo o mundo, a cultura do futebol está contaminada pelas piores práticas de gestão: pouquíssimo escrutínio, uma justiça própria permeável a pressões, enorme concentração de poder numa casta dirigente, ausência de alternância, mecanismos de controlo na directa dependência de quem é suposto ser controlado (veja-se a dificuldade em remover Bruno de Carvalho da presidência do Sporting), constantes conflitos de interesse (veja-se como os advogados do Benfica defendem em simultâneo o clube e funcionários suspeitos de prejudicar o clube), e depois, claro, uma enxurrada de dinheiro via direitos desportivos e televisivos, distribuídos de uma forma profundamente desigual pelos clubes – e assim colocando os mais pequenos cada vez mais dependentes dos favores dos grandes. Acabar com isto é uma tarefa ciclópica. Deixar tudo como está é oficializar o faroeste em pleno século XXI.

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