Panfleto estudantil "incendiário" do Maio de 68 publicado em Portugal ao fim de 50 anos

Da miséria no meio estudantil é um dos mais populares e premonitórios textos da Internacional Situacionista e foi editado em Portugal esta semana pela Antígona.

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Da miséria no meio estudantil foi traduzido, organizado e prefaciado por Júlio Henriques DR

Um panfleto escrito por estudantes da Universidade de Estrasburgo, em 1966, intitulado Da miséria no meio estudantil, considerado um "documento explosivo" que esteve na "antecâmara" do Maio de 68, foi publicado em Portugal esta semana pela Antígona.

Traduzido, organizado e prefaciado por Júlio Henriques, autor de Deus tem caspa e Alucinar o estrume, esta edição, de 128 páginas, vem ainda adicionada da banda desenhada O regresso da coluna Durruti, de André Bertrand, e de excertos de cartas de Guy Debord, o mentor da Internacional Situacionista e autor de A Sociedade Do Espectáculo, visto como uma das principais referências do Maio de 68.

"Acabámos de publicar Da miséria no meio estudantil, um panfleto escrito em 1966, pelos estudantes da Universidade de Estrasburgo. Fomos ainda investigar o que se escreveu sobre o Maio de 68. Há textos do Debord, textos que não pertencem ao texto fundador, que foram adicionados", e que fazem desta uma edição publicada pela primeira vez em Portugal, afirmou à Lusa Luís Oliveira, editor da Antígona.

Da miséria no meio estudantil é considerado um dos textos situacionistas mais célebres e premonitórios do movimento estudantil, a par de A sociedade do espectáculo, de Guy Debord, e da Arte de viver para a geração nova, de Raoul Vaneigem.

Este manifesto, "foi em França uma espécie de antecâmara da grande deflagração do Maio de 68, que anunciou e demonstrou o que é um ato de dissidência", explica Júlio Henriques, no prefácio desta edição.

Após a sua edição original, este libelo foi traduzido em várias línguas – actualmente está traduzido em todo o mundo, em mais de 30 línguas – tendo a primeira tradução em Portugal surgido em Coimbra em 1969, clandestinamente, no contexto da crise académica e da grande agitação estudantil contra o fascismo.

"É um documento explosivo. Meia dúzia de estudantes conseguiram, com um simples texto, galvanizar a sociedade francesa que deu origem ao Maio de 68. A origem desse movimento esteve nestes jovens com uma força enorme, que lançaram bombas. As suas palavras eram bombas", afirmou à Lusa Luís Oliveira, também fundador da Antígona - Editores refractários.

"Limitamo-nos a organizar a detonação", "A faculdade é um bando de burocratas, e nós somos a matéria-prima", "Eles respeitam tudo e todos, mas mentem sempre", "A liberdade é o crime que contém todos os crimes", "Onde houver fogo, nós metemos gasolina" e "O estudante julga-se tanto mais livre quanto o tolhem todas as grilhetas da autoridade" são algumas das frases que fazem parte deste panfleto subversivo.

Luís Oliveira, assumido inconformista, também considera que "a universidade é um sítio para criar ignorantes, com um ambiente castrador, de submissão, retira o prazer que os cursos podem dar". "Qualquer entusiasmo é suprimido com a hierarquia e a submissão imposta pelos professores".

A mesma ideia é explorada pelo escritor e tradutor Júlio Henriques, no prefácio, debruçando-se, entre outros temas, sobre as praxes, que se tornaram uma "vasta e desenvolvida infantilização de jovens adultos".

Nesse sentido, esta tradição académica permite verificar "o interessante grau de submissão a que podem ser levados indivíduos aparentemente na posse das suas faculdades mentais", continua, sublinhando que "a miséria do estudante começa pelo facto de dificilmente ser capaz de a reconhecer".

Para o editor da Antígona, os jovens estudantes que queiram mudar a vida, leiam este livro, "têm aqui uma 'bomba'".

Um século antes de rebentar o Maio de 68, Antero de Quental, "numa das suas premonições coimbrãs", fez uma "declaração espantosa", que é recordada por Júlio Henriques: "A Universidade só iluminará o povo, no dia em que lhe pegarem fogo".

Metaforicamente foi o que aconteceu com o panfleto Da miséria no meio estudantil, uma "pequena bomba contestatária", que "deflagrou no Escândalo de Estrasburgo, quando jovens iconoclastas, eleitos no meio da apatia geral para a associação de estudantes local, fizeram questão de a dissolver e de publicar este libelo às custas da universidade", descreve o editor.

"Este incendiário panfleto apontava o dedo à domesticação e à infantilização da camada estudantil, denunciando as universidades como 'organizações institucionais da ignorância', ao serviço da sociedade de consumo" e, "tal como as pedras da calçada, correria de mão em mão em Nanterre e nas ruas de Paris", em 1968, acrescenta.

Para Luís Oliveira, quem viveu neste tempo, emanou uma mensagem e energia que nunca podem ser ignorados.

Entre os anexos que compõem esta edição, conta-se a banda desenhada de André Bertrand, distribuída em 1966, que recriava a tomada de posição do sindicato de estudantes contestatários.

O livro conta também com excertos de cartas de Guy Debord dirigidas a Mustapha Khayati, membro histórico da Internacional Situacionista e um dos principais autores do panfleto, sobre a organização deste opúsculo.

A capa e a contracapa do livro são apresentadas em forma de uma banda desenhada da autoria do ilustrador Ricardo Castro, incluindo algumas das frases mais emblemáticas do panfleto.

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