A marcha-atrás do design automóvel rumo ao futuro

O passado é o novo luxo? Carros influenciados pelas curvas e pelo glamour de há mais de meio século ou pelas corridas de outros tempos, modelos que regressam às origens, topos de gama que incorporam traços de filosofias ou sabedorias artesanais milenares. Designers da indústria guiaram-nos pelos segredos da estética automóvel e pelas suas viagens ao passado.

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Há muito que o desenho de um automóvel é encarado com tanta seriedade quanto as prestações da motorização que o serve ou mesmo as, cada vez mais necessárias, credenciais ambientais. Por isso, é comum que os chefes das equipas de design tenham tanto — ou mais — protagonismo que os líderes da secção de engenharia. Mas com que linhas se cose actualmente o design automóvel mais inovador? Curiosamente, com linhas do antigamente: nos últimos anos, mais do que projecções futuristas, os designers têm feito um regresso ao passado curvilíneo das glamorosas décadas de 50 e 60 do século XX, com vários fabricantes a apoiarem-se, inclusive, em conhecimentos e filosofias ancestrais para darem corpo aos seus modelos.

“É uma questão de perceber de onde se vem e até onde se pode ir com o carro em que se está a trabalhar (...), melhorando constantemente”, explica Ian Callum, director de design da Jaguar, cujo currículo conta com vários veículos premiados saídos da sua pena (como o bem sucedido SUV F-Pace). O emblema de origens britânicas — e ressuscitado pelo capital da indiana Tata — é, aliás, uma das marcas que sabem que têm tudo a ganhar se não descurarem a história e abraçarem as linhas antigas.

Um exemplo recente de como o peso da idade pode ter um efeito rejuvenescedor é o Jaguar F-Type Project 7. Modelo limitado a uma produção exclusiva de 250 unidades e concebido pela divisão de projectos especiais (SVO, na sigla original), o Project 7 não só é o automóvel mais poderoso e rápido de sempre da marca do felino (com 575cv, vai dos 0 aos 100 km/h em 3,8 segundos), como representa o renascimento de um ícone entre o seu portefólio: o D-Type da década de 1950 que empresta vários detalhes estilísticos ao actual modelo. “É um novo clássico”, declarou o criativo Cesar Pieri do SVO, ao considerar que o novo Project 7 “capta nas suas formas puras a essência da herança das corridas.”

Mas o novo e exclusivo Project 7 não é o primeiro veículo deste século a inspirar-se no passado. O F-Type, que lhe serve de base e cuja primeira geração data de 2013, foi criado a partir do E-Type dos anos 1960, que continua, ainda hoje, a ser incluído na lista dos automóveis mais bonitos alguma vez construídos — atributo inicialmente dado por nada menos do que Enzo Ferrari, o “pai” da icónica marca homónima.

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Outras marcas também não se coíbem de engrenar a marcha-atrás na altura de lançarem novos modelos ou gerações: exemplo disso foi o roadster MX-5 da nipónica Mazda, cuja quarta geração rompe declaradamente laços com a versão que a precede, valendo-se de uma estética mais similar ao Miata original, lançado em 1989. E a marca de Hiroxima vai mais longe: além de se inspirar em modelos de décadas passadas, dedica parte do seu tempo a explorar técnicas de design cuja fluidez de linhas se baseia em correntes da filosofia oriental, aplicando-a à criação de objectos de design que, por seu turno, podem tornar-se um primeiro rascunho de um automóvel.

As mãos que embalam os carros

Callum, da Jaguar, assume frequentemente que para fazer o desenho do carro ideal só são precisas três linhas, desmistificando assim, de algum modo, um processo que, sabe-se, demora anos desde o primeiro esboço até à concretização. À conversa com o chefe de design da marca de Coventry, durante uma visita do Culto ao centro de design no ano passado, tudo parece simples e fácil, mas a vasta equipa em que se apoia contraria desde logo a sua tese. Se pode ser verdade que as tais duas ou três linhas resultam num automóvel de sucesso, tudo o que existe desde este momento até ao início de produção de um veículo leva um tempo considerável a afinar. “A primeira preocupação, por exemplo, é o equilíbrio das proporções.”

Na Mazda, por exemplo, o concept Vision Coupé, que arrebatou paixões (e prémios) desde a sua recente revelação, teve um processo distinto. Ao invés de começar por desenhar o carro, a equipa de design dedicou-se a criar formas que, mesmo em objectos estanques, imprimissem a sensação de fluidez. Para conceptualizar o projecto foi dedicado muito tempo a desenvolver uma nova linguagem de design que, assente em pilares culturais ancestrais do Japão, foi baptizada “kodo”, palavra à qual a marca associa a expressão “alma em movimento”. A ideia, que não estará longe de uma visão animista do mundo — muito cara ao Japão —, é dar vida a objectos inanimados, estudando em detalhe os mais ínfimos momentos dinâmicos dos seres vivos. Os últimos desenvolvimentos da linguagem kodo passam por encontrar o equilíbrio entre a “beleza subtil e contida” e, ao mesmo tempo, “rica e abundante”.

Seguindo-se o “conceito minimalista de menos é mais, no qual a ênfase está na remoção ou minimização de elementos para criar uma abundância de espaço” (e, consequentemente, de emoções), chegou-se a linhas mais simples – mas, ainda assim, mais vivas, ou seja, o carro não precisa de se mover para o percepcionarmos em movimento – o jogo de luzes e sombras potencia flutuações ao longo da carroçaria que, dependendo do nosso ângulo de visão, parecem criar a cada momento um automóvel diferente e, arrisca a marca, efectivamente “vivo”. “Na nossa actual gama”, resume a marca, “captámos a dinâmica ao momento de uma criatura viva, traduzindo-a directamente para a forma física de cada automóvel.”

Será que estamos a falar já de obras de arte pensadas para acelerarem pelo mundo como se estivessem em contínuas performances? Sim: numa recente oficina sobre Design, que decorreu este ano em Ílhavo, outro especialista da Mazda, Kevin Rice, director do estúdio europeu de design da marca, revelou que a ambição do fabricante é, precisamente, criar “obras de arte”. “E quando digo isto, as reacções que obtenho são de algum nervosismo”, adianta, clarificando que “isso não significa fabricar carros que têm o museu como destino”. “O que queremos fazer é trazer a arte para o quotidiano e isso implica confiar na perícia dos nossos designers.” Rice faz ainda questão de sublinhar que o que é realmente “muito importante” é, “quando se fala de design exterior, voltar a criar de forma artesanal”. Um conceito que poderá ser lido como “antiquado no mundo moderno”. “Aquilo que descobrimos é que a nossa nova direcção de design só é possível se executada por mãos humanas.”

O carro-origami

Outra empresa nipónica que parece apostar na criação de arte, literalmente, pela mão humana é a Lexus, marca de luxo do grupo Toyota, que para o recém-chegado LS 500h convidou os mestres takumi que integram as equipas de design a elaborar, entre outros pormenores, os ornamentos do interior do veículo. Uma curiosidade: além de versados nas mais recentes tecnologias e ferramentas, estes artesãos são, de acordo com a informação oficial veiculada pelo emblema japonês, seleccionados pela destreza e rapidez através de um inusitado teste — dobrar um gato origami, recorrendo apenas à mão não dominante, em menos de 90 segundos...

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A importância da arte do origami tradicional japonês, praticada pelo menos desde o século XVII, é transversal em quase todos os modelos Lexus, mas os últimos exemplares estreados em estrada revelam como o trabalho artesanal tem crescido. Não à toa, há dois anos, o departamento da Lexus no Reino Unido homenageou os takumis com a produção de uma réplica do IS, em escala real, em origami — para tal, foram usados quase 2000 painéis de cartão reciclável, com 10mm de espessura. Curiosidade: o carro de papel foi equipado com um motor eléctrico, permitindo a sua mobilidade.

Voltando à gama LS, a técnica de dobragem foi aplicada a outros materiais, evidenciando-se a filosofia origami. Exemplo disso é o forro das portas, em tecido suave ao toque, trabalhado manualmente num efeito plissado tridimensional. “O padrão neste tipo de tecido [sedoso] consegue alterar a sua expressão, dependendo se reflecte a luz do dia ou, à noite, a iluminação do interior do veículo”, explicou o chefe de design da gama LS, Koichi Suga, por altura da revelação do automóvel no Salão de Genebra de 2017. Outro pormenor que sobressai no interior das portas é uma peça em vidro cortado de acordo com a técnica secular kiriko que, essencialmente, se define pela arte de esculpir vidro à mão. O resultado é um ornamento aparentemente delicado, mas que, beneficiando da avançada tecnologia de reforço de vidro, se revela extremamente resistente.

Chapa, luz e sombra

Com tanta busca conceptual, artes e regressos ao passado, não deixa de ser concludente quando ouvimos o director de design da Seat, Alejandro Mesonero, dizer-nos que, apesar de toda a evolução, “desenhar um carro” ainda “é dobrar chapa”. Mas não se pense que Mesonero, de facto, limita a “arte” da indústria automóvel a esta técnica. É que o conceito do designer, perto de outros que já conhecemos, passa por esse “dobrar chapa”, mas com o objectivo de “criar pontos de luz e sombra”.

Isso afasta-nos, desde logo, das figuras geométricas que, nos finais do séc. XX, pareciam dominantes no design automóvel: os quadrados. Estes eram predominantes no desenho da indústria, que via nessas formas a maneira ideal de constituir volumes exageradamente (como quase tudo o resto ao longo daquele período) distintos. No entanto, se, por um lado, esses desenhos vincavam características de personalidade, por outro, depressa se compreendeu que não era necessário recorrer à fórmula para obter o mesmo efeito. Além do mais, as novas regras de segurança com os peões obrigaram todas as marcas a repensarem os ângulos, sobretudo os presentes na secção dianteira.

São regras que têm de ser cumpridas, se se almeja uma homologação fácil. E que têm impacto absoluto na forma como é desenhado o carro. Mas, como salienta Mesonero, é possível sempre ir mais longe: “Os automóveis são esculturas sobre rodas; passa por dar forma e vida à chapa de metal. É um tipo de arte em movimento.” Um conceito que, à partida, parece semelhante ao defendido por Kevin Rice da Mazda. Mas, na verdade, os resultados não podiam ser mais diferentes, já que, enquanto na casa de Hiroxima se privilegiam as linhas simples e há um conceito global, da casa-mãe da Seat, em Martorell, próximo de Barcelona, saem traços expressivos que criam, entre si, painéis que têm impacto e que, sublinhe-se, fazem a sua identidade reflectir a luz local. “Um carro desenhado numa latitude com menos luz nunca sairá igual a um projectado numa cidade como Barcelona (ou Lisboa, se fosse o caso) — desenhamos com luz e sombras e, por cá [Península Ibérica], temos ambas em abundância.”

E, neste jogo de formas e luzes, há que não esquecer um dos aspectos mais relevantes do “corpo” do automóvel: a cor. À medida que a “dobragem de chapa" brinca com as proporções, há todo um processo que passa por diversas variantes a serem testadas, nomeadamente a pintura — “a escolha de uma tonalidade de cor não é um processo simples” e num novo modelo pode representar “quatro anos de trabalho, mais de mil litros de tinta, 500 rascunhos e cinco toneladas de barro de modelagem”. Um pouco mais do que as três linhas de Callum...

Entre as viagens ao passado para beber inspiração e a criação de novas linguagens, o certo que é que o design automóvel se manterá como um jogo de luzes. Ainda assim, um outro factor poderá também ter um peso significativo na alteração deste jogo e desta busca, já que é sabido que as apertadas normas ambientais tendem a apelar ao uso de materiais cada vez mais leves e a formas que privilegiem a aerodinâmica e, consequentemente, a eficiência.

A questão passa por perceber se este factor poderá, nos próximos tempos, virar novamente a página do desenho automóvel noutro sentido. Até porque, vendo bem, por mais que se ande a inventar e a reinventar as linhas, as proporções são similares há mais de um século: capot, habitáculo para até três filas de bancos e secção traseira com mala mais ou menos pronunciada. Provavelmente, para a reinvenção total, só a chegada massificada dos carros autónomos anunciados poderá mudar para sempre a figura do automóvel. Ou será que, mesmo então, o carro do futuro se fará com linhas do passado?

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