O Zeca “Mulatinho”

O Zeca é rebento casual de um leito intenso onde se encontraram oceanos de suor que não se misturaram, uma “criança ONU”, como é, infelizmente, hábito denominar, na gíria, este género de natalidades. Plantado no mundo, algures entre a guerra e a paz. Mestiço, filho de um agente da pacificação, a trabalhar em nome da cooperação, mas que, neste caso concreto, não cooperou – nunca assumiu a paternidade da criança por razões que só encontram crédito na sua própria consciência.

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Ivone Ralha

Entretanto, o Zeca, nome fictício, teve uma infância muito dura. Traumatizante mesmo. Na sua criancice, saltitou à corda de quintal em quintal, de mochila às costas, carregada com as pedras todas que a vida lhe foi arremessando. Em cada uma das pedras, está cravada parte da sua vida. A sua pequena, mas já ferida, memória armazena vivências aterradoras para uma criança: o não-reconhecimento pelo pai e as dificuldades financeiras vividas pela mãe, que, desesperadamente, o deitou durante a noite – ainda bebé – junto ao portão de entrada da casa do pai, na cidade. O progenitor, alertado pelo guarda da casa, decidiu, também ele, e na mesma noite, deixar a criança à porta de uma instituição.

Um dia mais tarde, o avô materno e uma tia conseguiram localizá-lo e tomaram a sua guarda.

O Zeca cresceu entre as ruas da cidade e a solidariedade do bairro onde coleccionava afectos. Baloiçava de tal maneira na sorte que fez dela escola. Acordava com as lágrimas da noite em forma de remela. Ensonado, a coçar a sarna, lá ia ele, ainda com a higiene por fazer e suportando a sua grande barriga de fome, provar o chá da vizinhança. Era conhecido nas redondezas pela alcunha de “Mulatinho”. Descalçado pela vida, moreno e de olhos azuis, o Zeca personificava no bairro a cooperação entre as nações. Partilhava com o avô e algumas ratazanas, num bairro de caniço nos arredores da capital, uma casa bastante humilde. Com apenas oito anos de idade, já contava no seu pequeno curriculum com façanhas de encontros com bandidos no interior da sua casa. Dormia com um grande facalhão para defender, segundo ele, a sua comida, e chegou mesmo a matar um ladrão. Mas os ratos e baratas, que entravam nas panelas cheias de nada para roubar a comida, esses é que eram os seus principais inimigos. O resto era fruto da imaginação, pesadelos e traumas do Zeca.

Para se ter a percepção do valor que o Zeca ainda confere à comida, é experimentarmos partilhar uma refeição com ele. Só não come a louça, os talheres e a mesa porque o estômago não lhe permite. A barriga, os dentes e o instinto são de crocodilo. Não há espinha nem osso que lhe resista! São tantos, mas tantos os dias de fome que, se lhe pusermos em frente a carta dos seus direitos, esta corre um sério risco de ser digerida sem ser mastigada.

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