A dignidade, na hora da nossa morte

Fico por aqui tentando, como sempre nestas crónicas, não transformar o pessoal em confessional. Mas conto isto porque a pessoalização da nossa relação pessoal com a morte é inevitável — haverá experiência mais pessoal do que a morte?

“Dignidade” é uma daquelas palavras que mudou de significado, no sentido de antes ser reservada a poucos e depois (entre o Renascimento e as Luzes do século XVIII) passar a ser considerada como de todos os humanos incondicionalmente. Tal como nos “direitos” (que se aplicavam principalmente aos detentores de privilégios feudais) ou na “soberania” (que se aplicava apenas aos soberanos, ou seja, príncipes e outros monarcas), era suposto que a dignidade fosse a característica exclusiva de quem tinha um estatuto social, político ou religioso elevado. A dignidade não era, então, para todos. Um rei tinha dignidade, um cardeal tinha dignidade. As pessoas comuns não tinham, supostamente, dignidade. Se nos lembrarmos bem, existe um resquício deste sentido antigo numa palavra que ainda usamos hoje: os “dignitários”. Dignitários são os chefes de estado nacionais ou estrangeiros, os embaixadores, os líderes religiosos: aqueles que dantes era suposto serem os únicos detentores de dignidade.

O sentido da palavra começou a ampliar-se com um discurso de um humanista italiano, Pico della Mirandola, “Sobre a Dignidade do Homem”, publicado em 1496, dez anos depois de ter sido escrito (como introdução a umas Novecentas teses sobre o conhecimento que a igreja proibiu). Hoje sabe-se, porém, que o título não estava no texto original, tendo-lhe sido agregado pelos sucessores e admiradores de Pico. Talvez um dos maiores deles tenha sido Thomas More, que no seu mais célebre texto, a Utopia, tentou levar até às suas conclusões lógicas a ideia de que todos os seres humanos têm, de forma universal e incondicional, dignidade.

Talvez não por acaso, Thomas More deixou escrito que os habitantes da ilha da Utopia permitiam a eutanásia para quem tinha “doenças incuráveis e dor torturante e permanente”, desde que a escolhessem voluntariamente. Para quem rejeitasse a eutanásia, dizia More, a comunidade da Utopia “continua a dar aos seus enfermos os melhores cuidados e atenção... tornando as suas vidas tão confortáveis quanto possível” até ao fim.

Não sei se era isto que eu queria escrever na crónica de segunda-feira, que era suposto sair antes do debate da eutanásia na Assembleia da República, ou na crónica de quarta, que era para sair logo após saber-se o resultado (negativo) da votação. Mas não escrevi nenhuma dessas crónicas. E não as escrevi porque a morte de alguém muito próximo e querido me impediu de sequer poder pensar em escrever. Alguém de tão próximo e querido que não sei como nomear: entre colegas era o António Loja Neves, cineasta, jornalista e escritor; como amigo, era simplesmente o Loja; para a família, o António; para o meu filho de seis meses, o Avô, que vinha cuidar dele todas as segundas; para a minha mulher, o teu Pai; entre nós, quando queria zombar dele sabendo ambos quanto o admirava, o “sogrão”. No sábado estivemos lado a lado horas antes, fazendo o que gostávamos, que era assinar os nossos livros e mandar piadas entre amigos e família. No domingo, já não o tínhamos; o coração faltou-lhe à chamada. Na segunda-feira, quando não saiu a crónica, andávamos arrasados pela cidade tentando cumprir com os últimos desejos do pai, do avô, do amigo.

Fico por aqui tentando, como sempre nestas crónicas, não transformar o pessoal em confessional. Mas conto isto porque a pessoalização da nossa relação pessoal com a morte é inevitável — haverá experiência mais pessoal do que a morte? E porque se levamos a sério a ideia da dignidade para todos é inevitável que tenhamos de respeitar as decisões autónomas e conscientes que cada um faz para si mesmo, como intensamente o sentimos aqui em casa por estes dias. Acontece que o António Loja Neves tinha indicações muito específicas para o seu velório, no qual queria que houvesse música do seu amado Cabo Verde, onde tinha vivido e estudado. A nós e aos seus muitos amigos que tudo fizemos para que isso fosse possível, restava respeitar aquilo que para cada um de nós poderia não ser a nossa escolha. Tal como restava respeitar a escolha de um lugar inteiramente não-religioso para a cerimónia. Esta, em particular, revelou-se uma verdadeira corrida de obstáculos: não sei se muitas pessoas terão consciência que mesmo numa cidade como Lisboa todos os lugares disponíveis para uso corrente das agências funerárias acabam sendo de uma forma ou de outra lugares religiosos. A falta de espaços laicos onde realizar cerimónias fúnebres deixa ateus e agnósticos numa situação de inferioridade e discriminação à qual urge pôr cobro urgentemente.

Regresso aonde comecei, para poder concluir sobre a eutanásia e o que deve fazer o país agora que as propostas da sua despenalização foram chumbadas mas o debate sobre o assunto está apenas a ganhar outra dimensão.

Na Bíblia hebraica há três ou quatro palavras que se podem traduzir por “dignidade”, mas que querem na verdade dizer “majestade” ou “elevado”. Em hebreu moderno, a palavra que mais se usa para um conceito equivalente ao de dignidade é “B’tselem”, que quer dizer “à imagem de si mesmo” (a mesma que aparece no versículo do Génesis em que Deus cria o homem “à sua imagem”; B’tselem é também, não por acaso, o nome de uma bem conhecida organização israelita de defesa dos direitos humanos nos território palestinianos ocupados). Entre uma coisa e outra, lá está o mesmo arco entre um conceito de dignidade que estava reservado apenas a reis e sacerdotes e outro que se aplica a todos nós. Todos temos direito à nossa “B’tselem”, à nossa imagem de nós mesmos. Cada um tem de si mesmo uma imagem diferente. É isso a dignidade, essa incompreendida. É por isso que, no debate da eutanásia, tantas vezes ouvimos alguém dizer que “não me vejo a acabar a vida” com dores insuportáveis ou com perda prolongada de consciência como ouvimos outros dizer que “não me vejo a pedir para morrer”. A única coisa que estas escolhas opostas têm em comum é que cada pessoa quer ter um mínimo de controle sobre a imagem que quer ter de si mesmo até ao momento da morte. Aquele “não me vejo a” é a tal B’tselem, a imagem que cada um quer preservar de si mesmo. Ou seja, a dignidade, diferente para cada um, igual para todos; e a nossa República (tal como a UE no seu tratado fundador) tem um dever constitucional de respeitar a dignidade humana.

Em meu entender, ao chumbar a possibilidade de um enquadramento legalizando a possibilidade da eutanásia voluntária e consciente, a Assembleia da República manteve uma situação grave de discriminação, impondo a imagem que alguns têm da sua própria morte a todos os que não a têm. Mesmo que os primeiros — os que recusam a eutanásia — fossem uma maioria, isso não mudaria em nada a gravidade de obrigar todos a obedecer à recusa da eutanásia só de alguns.

E agora, o que fazer? Talvez tomar como inspiração o exemplo de algo que os irlandeses fizeram recentemente com a questão do aborto. Atenção: não falo do referendo, que não deve servir para uma maioria decidir de questões de direitos de uma minoria, mas de algo muito menos visível que os irlandeses fizeram antes do referendo. Poucos sabem que os políticos, na Irlanda, deram a uma comissão de cidadãos escolhidos à sorte (com uma distribuição regional proporcional) a incumbência de durante meses tirarem os seus fins-de-semana para ouvirem especialistas, ativistas e organizações apresentarem os seus argumentos, dados e informações sobre a questão do aborto. Findo esse processo, os cidadãos dessa comissão apresentaram as suas recomendações aos políticos, que surpreenderam toda a gente por serem mais avançadas e mais abrangentes do que os compromissos que anteriormente se tinham formado entre partidos. Foram estas recomendações que ajudaram a formar a base da nova legislação que regulará a IVG na Irlanda depois de despenalizada.

Este mecanismo de democracia deliberativa (muito mais apropriado para questões desta natureza do que o maniqueísmo de um referendo) poderia ajudar Portugal a fazer o tal debate sério que agora se reclama, naquilo a que poderíamos chamar a Comissão da Dignidade no Fim da Vida. As recomendações dessa comissão cidadã poderiam ajudar os partidos a apresentar nas próximas eleições propostas já consensualizadas sobre todos os aspectos que têm a ver com o fim da vida — cuidados hospitalares e em lares de idosos, o enquadramento legal da eutanásia, e o respeito pela laicidade nas cerimónias fúnebres de todos os cidadãos, independentemente de crença ou não-crença. Essa comissão não retirará aos partidos e aos deputados o direito e a obrigação de legislar que têm. Mas poderá ajudar a desbloquear o debate e a encontrar caminhos. Tenhamos confiança na empatia que os cidadãos sabem ter com quem está perto — pouco antes, mas também pouco depois — da morte.

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