Todos diferentes, todos iguais, todos vários

Neste Dia dos Irmãos, são memórias que bailam comigo. Do meu irmão Fernando e de outros irmãos que fui recebendo ao longo da vida.

A festa dos irmãos, o 31 de Maio, é uma grande festa, uma festa de inesgotável variedade. As relações entre irmãos e irmãs variam muito consoante o seu número, o sexo e a diferença de idades. A observação tem-me mostrado isso.

Dois irmãos quase da mesma idade não são iguais a outros de idade afastada, nem iguais a duas irmãs ou a um irmão e uma irmã. Muitos irmãos, como sete, nove ou mais, parece organizarem-se por patamares, gerando subgrupos entre os mais velhos, os do meio, os mais novos. Um irmão muito mais novo de duas ou mais irmãs é um príncipe, uma espécie de boneco adorado. Mas, se for o mais velho de somente irmãs, parece ser-lhes um estranho: nem o entendem, nem o adoram, nem brincam com ele – verdade seja que esse único entre as mulheres também não mostra muita paciência para elas. O quadro é semelhante se for uma rapariga mais nova de só irmãos, em que estes tendem a assumir um papel protector. Mas já se a rapariga for a mais velha, o quadro típico muda: os rapazes, todos mais novos, funcionam à parte; a irmã mais velha tenta, repetidas vezes, papéis de mandona, de segunda mãe, propósito em que costuma ser mal sucedida. Se os irmãos são só rapazes, a cumplicidade é intensíssima. Dois são parelha ideal para a paródia e a asneira, ou núcleo formidável em equipas de bairro, de escola ou de amigos. Quem não se lembra dos irmãos Nunes, ou dos Castrinhos ou dos Sousas? E se são três, quatro ou cinco, todos seguidos nas idades, a coisa pode evoluir para grupos lendários de temível coesão. Se forem só irmãs, o quadro é similar, embora mudem os jogos, as dinâmicas e os temas grupais para os interesses e olhares mais típicos nas raparigas. Se a muitos irmãos, nasce um irmão ou irmã muito mais novo, esse bebé, essa criança tardia muda todo o quadro estabelecido, ganhando novidades e riqueza para toda a vida. Diferentes são as relações se são todos filhos dos mesmos pai e mãe – os irmãos germanos – ou só do mesmo pai ou da mesma mãe, mas, se não há veneno a ser metido, é marcante a unidade como laço que todos querem construir e proteger. Cada um sabe do seu quadro.

A minha experiência é a de dois irmãos, a mais simples de todas. Só tive um irmão, um ano e meio mais velho do que eu. Desenvolvemos cumplicidade fortíssima, que ninguém desenhou, nem ensinou. Cresceu connosco e nós com ela. Hoje, nos meus netos, há dois irmãos, ainda muito pequenos (um a chegar aos quatro, outro a caminho dos três anos), com quase a mesma diferença de idades que eu tinha do meu irmão. Tenho dado várias vezes por mim a deliciar-me a observar a forma como, ainda antes das primeiras palavras do mais novo, aprenderam a comunicar entre ambos, a inventar jogos e brincadeiras, a bulhar até partilharem, a construir alianças, a tentar ludibriar o outro, a construir espaço comum e conquistar espaço próprio, ou o mais velho a querer mandar e o mais novo a furtar-se. Os primeiros amigos um do outro, amigos para sempre, amigos para toda a vida.

Sendo o mais novo, usei sapatos, calções, camisolas, casacões que tinham sido de meu irmão. Andei nas mesmas escolas que ele, a maior parte do tempo um ano atrás dele: na infantil, na escola primária n.º 24, na secção de Alvalade do Camões, no Padre António Vieira. Estudei pelos mesmos livros que tinham sido dele. Os percursos separaram-se, quando ele seguiu a alínea “F” (engenharias) e eu a alínea “E” (direito). Mais ainda quando ele escolheu a Escola Naval e eu fiquei por casa para ir para a Faculdade. Começámos a fumar praticamente na mesma altura, aí pelos 13 ou 14 anos – um disparate monumental, que fazia parte da cultura do tempo. Ao meu irmão, foi isso que o matou aos 61 anos; a mim, embora já tenha deixado de fumar há uns bons anos, nunca sei. Até ao ensino superior nos separar, incontáveis milhares de quilómetros fizemos a pé, lado a lado, ano após ano, em longas e repetidas caminhadas entre casa e a escola e, depois, o liceu, para ir e para voltar. Dormíamos, brincávamos e estudávamos no mesmo quarto – por vezes, a brincadeira e o estudo transbordavam para outras partes.

O Fernando mostrou, entre outros talentos, jeito para a música. A certa altura, comprou uma gaita. E não é que aprendeu a tocar sozinho? Passou a passatempo quotidiano, por vezes um pouco massacrante: não é fácil partilhar o quarto com o Mozart da gaita-de-beiços. Definiu e apurou o repertório para espectáculos familiares ou com amigos. Tornou-se um clássico de grande risota quando actuava ao lado de um cão que tínhamos, o “Dominó”, rafeiro, mas melómano. Quando o meu irmão tocava, o “Dominó” desatava a uivar sentidamente; só se calava quando a harmónica deixava de se ouvir. Nunca ficou inteiramente esclarecido a que se devia o fenómeno: se era protesto, se querer cantar na onda melódica da inspirada gaita.

A nota mais dominante da nossa parceria foi a inventiva e a criação. Em S. Domingos de Rana, onde passávamos férias, a garagem foi nosso laboratório social multiusos. Em Verões consecutivos, foi sujeita a múltiplas metamorfoses: estaleiro de Lego e comboio eléctricos, com arrojados e sempre remodelados percursos; estúdio de pintura; laboratório de química; centro botânico experimental; sala de jogos e, depois, sala de jogo; laboratório fotográfico, com câmara escura, e sala de montagem de cinema; discoteca ou, como na altura dizíamos, “boîte”, nesse tempo imortal das festas de garagem dos slows e do yé-yé. O meu lado “bricoleur”, que ainda mantenho e exerço, devo-o à contínua e variada aprendizagem destas engenhocas, em que imaginávamos, construíamos e resolvíamos todos os problemas surgidos.

Aprendi grandes lições de vida. O Fernando gostava muito de provas de campo – eu não. Uma vez, teve uma na serra da Arrábida. Coisa dura: várias equipas de pares tinham de descobrir o caminho, por uma série de mensagens e sinais, ao longo de cerca de 50 quilómetros de matas, trilhos e encostas, previstos para dois dias. A dupla do meu irmão desistiu, cansados, desorientados, crendo-se perdidos, ao fim do segundo dia. Ficaram fulos consigo mesmos: estavam apenas a 1 km da meta, menos de uma hora. Ficou para ele e para mim como lição contra a desistência: ao percorrermos o desconhecido, nunca sabemos se já só falta o mais fácil.

Quando voltou dessa prova de campo, convenceu-me a armar a tenda num pequeno relvado ao lado da garagem e dormirmos lá nessa noite, antes de a devolver. O cão também. Tudo esteve bem até o Fernando adormecer. Depois de me certificar de que ele já dormia profundamente, escapuli-me para o meu quarto e a minha cama. O cão, que era da mesma religião, fez o mesmo. O Fernando ficou entregue à paz campista de que tanto gostava. Eu e o “Dominó” não.

Neste Dia dos Irmãos, 31 de Maio, são memórias que bailam comigo. Do meu irmão Fernando e de outros irmãos que, sendo amigos tão chegados e com laços tão próximos e tão cúmplices, fui recebendo ao longo da vida: o Adelino Amaro da Costa, o José Artur Quesada Pastor, o Roberto Carneiro, o Rui Pena; os primos, prolongamento dos irmãos; os irmãos dos pais, os tios, com que cresce mais abertura e confidência, marca da cumplicidade.

O Dia dos Irmãos é para nos festejarmos uns aos outros, no espaço da vida e das memórias de cada um. Somos diferentes e iguais, somos muito vários, somos parecidos e sempre próximos. Perto ou longe, é sempre como se ainda ontem tivéssemos estado juntos. A vida nunca parou entre nós. Bom Dia dos Irmãos!

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