O “sim” à eutanásia perdeu – mas vai ganhar

Se os referendos não foram inventados para consultar os cidadãos sobre questões tão complexas e íntimas quanto esta, sinceramente não sei para que é que servem.

Sim, é só mesmo uma questão de tempo, mas em democracia é importante que as coisas sejam feitas da forma certa, no momento certo. Mais cedo que tarde, a prática da eutanásia vai ser legalizada em Portugal, pela simples razão de que quem a deseja luta por ela com muito mais energia e afinco do que quem não a deseja. Já aconteceu assim com a legalização do aborto. Contudo, a aprovação da eutanásia no Parlamento em 2018 estaria sempre ferida de falta de legitimidade democrática, e chumbá-la foi a decisão certa: o tema não constava dos programas eleitorais dos maiores partidos; não foi convocado um referendo; o debate não foi tão alargado e profundo quanto o tema merecia; há dúvidas fundamentadas de constitucionalidade que têm de ser esclarecidas; e Marcelo Rebelo de Sousa iria certamente vetar a lei se ela fosse aprovada pela margem mínima. Para quê, então, fazer as coisas mal e atabalhoadamente, se se podem fazer bem e de forma ponderada?

E fazer bem feito significa fazer assim:

Em primeiro lugar, os partidos devem manifestar a sua posição em relação ao tema nos seus programas eleitorais, para que aquelas pessoas que são como Cavaco Silva – ou seja, que recusam votar em partidos que apoiem a legalização da eutanásia; ou que, por outro lado, recusem votar em quem não a apoia – possam dirigir-se às urnas devidamente esclarecidas.

Em segundo lugar, deve ser promovido um referendo sobre esta matéria. Se os referendos não foram inventados para consultar os cidadãos sobre questões tão complexas e íntimas quanto esta, sinceramente não sei para que é que servem. Como explicou Luís Aguiar-Conraria no Observador, não faz sentido que um socialista que se oponha à eutanásia seja obrigado a votar no CDS ou no PCP só porque não concorda com um ponto do seu programa. Tal como um comunista ou um democrata-cristão deve poder votar no PCP ou no CDS, mesmo discordando das opções dos seus partidos nesta matéria. A solução para este impasse (e para as angústias do professor Cavaco Silva) passa obviamente pelo referendo.

Em terceiro lugar, deve existir um debate muito alargado e muito bem esclarecido sobre aquilo que está em causa. Eu já referi isto no meu texto de terça-feira e volto a insistir, porque é um aspecto fundamental, que não vejo sequer estar a ser posto em cima da mesa. Não é admissível estarmos constantemente a ouvir falar em “descriminalização” ou em “despenalização” da eutanásia e depois sermos confrontados com a instituição de um verdadeiro direito à morte assumido pelo Estado e subsidiado pelo Sistema Nacional de Saúde. São duas coisas totalmente diferentes. E há pessoas, como eu, que concordam com a primeira parte (a descriminalização) e discordam profundamente da segunda (a subsidiação).

A nossa primeira obrigação nestas matérias é manter a clareza da linguagem e a resistência às demagogias – e tão demagogos são aqueles que para criticar a legalização da eutanásia inventam espantalhos que pura e simplesmente não existem na lei (tipo: a aniquilação de todos os doentes incómodos); como são aqueles que enchem a boca com os grandes méritos da descriminalização, quando aquilo que na prática estão a fazer é criar uma estrutura estatal e um mecanismo burocrático de execução de doentes a pedido, dentro dos hospitais públicos. Não se pode invocar o liberalismo para dizer “deixem passar a eutanásia, porque só a pratica quem quer”, e depois, no final, requisitar os impostos de toda a gente para pagar a conta.

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